No Brasil de 2019 muitas coisas “novas” têm nascido velhas. De partidos a candidatos, passando por supostas práticas políticas e projetos inovadores, como a última novidade do governo federal. Depois de um semestre perdido para a Educação, com muita trapalhada ministerial, muito discurso ideológico que pretende rotular de ‘ideológico’ os outros – todos os que não estão do lado do governo-, programas parados, contingenciamentos e cortes, da educação básica a superior, eis que o MEC apresenta seu primeiro projeto: Future-se. Como me alertou uma amiga, o nome pode ser mais uma prova do arranjo de última hora que se apresenta como a salvação da lavoura, ou melhor, da educação, porque a lavoura está mesmo é envenenada: estaria o projeto do MEC surfando nas ondas do noronhe-se? Não seria de se estranhar, afinal, trata-se de um projeto de um governo eleito pelos memes e pelas fake news via Twitter e WhatsApp.
A abertura da apresentação do Future-se é digna de filme de ficção científica com trilha sonora de filme de herói. Inovação é a palavra de ordem. Quando o ministro Abraham Weintraub pega o microfone ouvimos: liberdade, conhecimento, pesquisa, trabalho, futuro, riqueza, future-se! Assim, palavras soltas, bem a cara da apresentação que se segue e do projeto em si: cheio de palavras e frases de efeito, mas muito vago, com muitas pontas soltas, deixando as questões mais importantes sobre o funcionamento do projeto para o futuro. Na sequência o ministro passa a agradecer aqueles que trabalharam no projeto, inclusive os gurus (sem citar nome específico, mas mandando recado para o seu mestre e guru, com quem aprendeu direitinho como dialogar e argumentar democraticamente…). Quem de fato apresentou o Future-se foi o secretário de educação superior, Arnaldo Barbosa de Lima Júnior, que terminou a apresentação no melhor estilo coach: “Bem, o que eu gostaria de dizer, todos nós temos as nossas amarras, e eu gostaria de falar com os estudantes, a gente tem várias barreiras, no meu caso hoje é minha gravata (enquanto fala, o coach está tirando a gravata diante da plateia que assistia a apresentação), mas a gente tem que pegar essas barreiras e botar no bolso, porque o nosso potencial é gigantesco. A gente precisa acreditar em nós mesmos. Nós somos uma indústria que precisa ter um produto de exportação na indústria do conhecimento.” Essa é a cara do MEC de hoje: economista, coach, economista, gurus, economista. Para quem ficou na dúvida, o MEC é o Ministério da Educação e não da Economia (embora o Arnaldo Barbosa, aos 16 minutos e 14 segundos, também esteja um pouco confuso). Mas essa confusão é compreensível e, ao ler as nove páginas do PDF do Future-se, ela pode ser ainda maior, afinal o ‘economiquês’ rola solto.
Mas vamos aos fatos. O que é o Future-se? É o “Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras” cuja finalidade é “o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), por meio de parceria com organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios” e divide-se em três eixos: i) Governança, Gestão e Empreendedorismo; ii) Pesquisa e Inovação e iii) Internacionalização. Mas nesse governo, como já estamos aprendendo, as palavras não significam exatamente o que costumeiramente significam. Ou melhor, esse governo opera com a novilíngua. Por que digo isso? É preciso atenção: a palavra autonomia aparece muitas vezes no documento publicado pelo MEC, bem como na fala de Arnaldo e Weintraub. Insistem em dizer que o Future-se “dará autonomia administrativa, financeira e de gestão” para as Ifes. No entanto, no artigo 207 da Constituição Federal (CF) lemos que: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” Então, do que está falando o ministro? Que nova autonomia é essa prometida pelo Future-se? O que as Organizações Sociais (OSs) teriam a ver com essa autonomia? Em sua apresentação, Arnaldo, o coach-secretário (ou secretário-coach?), disse que as OSs teriam “foco mais em despesas e gerenciamento, que dão muito trabalho para os reitores, a gente quer que eles foquem onde eles têm vantagem comparativa: que é pesquisa, o ensino e a extensão” (a partir de 11:05). Assim, autonomia administrativa pareceria algo como se livrar da administração, ou melhor, entregar a administração para as OSs. Seria essa a concepção de autonomia do MEC?
Por outro lado, há uma diferença entre “autonomia de gestão financeira”, que está prevista na CF, e “autonomia financeira”, prevista no Future-se. A primeira garante às Ifes autonomia para gerir o seu orçamento. Esse orçamento, por sua vez, é de responsabilidade do Estado. Ou seja, trata-se de um orçamento público que as Ifes têm autonomia para gerir. Já a segunda, prometida pelo MEC, pode significar justamente o fim da responsabilidade do Estado de garantir o orçamento das Ifes. Essas teriam agora autonomia para buscar o seu orçamento no setor privado, através de parcerias, serviços prestados, fundos imobiliários, etc. É esse ponto que tem feito sindicatos e associações de diretores das Ifes, além de professores e especialistas em geral, manifestarem preocupação com uma privatização das Universidades públicas. O governo e o MEC negam. No entanto, nos últimos meses temos motivos de sobra para não confiar no que é dito por membros desse governo.
Seguindo a leitura do documento (sem formatação e sem número de página), lemos no item 3, “Papel das Organizações Sociais”, que, uma vez contratadas, as OSs deverão: i) Apoiar a execução das atividades vinculadas aos 3 eixos do programa; ii) Apoiar a execução de planos de ensino, pesquisa e extensão das Ifes; iii) Realizar o processo de gestão dos recursos relativos a investimentos em empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento e inovação; iv) Auxiliar na gestão patrimonial dos imóveis das Ifes participantes; e v) Exercer outras atividades inerentes às suas finalidades. Logo de cara, saltam aos olhos os itens i e ii. De acordo com eles as OSs não estariam focados em atividades de despesas e gerenciamento, mas desempenhariam atividades também relacionadas à ‘execução de planos de ensino, pesquisa e extensão’. Nesse caso, como fica a “autonomia didático-científico” do artigo 207 da CF? No item v, fala-se em “outras atividades inerentes às suas finalidades”, no caso a finalidade das OSs. Que atividades seriam essas? Onde estão previstas essas “finalidades”? Afinal, o tópico 3 não fala justamente do papel das OSs? No item iv, fala-se em ‘auxiliar na gestão patrimonial dos imóveis das Ifes participantes’ do Future-se. Mais uma vez, como fica a “autonomia de gestão financeira e patrimonial” do artigo 207? O que exatamente o MEC entende por autonomia? Entregar todas essas atribuições das Ifes para as OSs? Isso é autonomia ou terceirização? Uma primeira leitura desse projeto leva o leitor a suspeitar que na verdade o Future-se trata de um projeto para retirar a autonomia administrativa, financeira e de gestão das Ifes, ameaçando inclusive a autonomia didático-científica, entregando tudo isso nas mãos de OSs.
Além do economiquês que dificulta muito a leitura do texto, o projeto é vago em vários momentos, pedindo que reitores e comunidade acadêmica assinem um cheque em branco. Para exemplificar essa vagueza ou falta de precisão, no item 9, ‘Comitê de Gestão’, lemos que este “terá sua composição e seu funcionamento definidos em regulamento”. Só não sabemos que regulamento, feito por quem, quando. Além disso, quem serão os membros desse Comitê-Gestor que irá acompanhar e supervisionar o Future-se? Um Comitê que, entre outras atribuições, irá “estabelecer as diretrizes das ações no âmbito do Programa” e “Definir o critério para aceitação das certificações, para fins de participação no processo eleitoral dos reitores”. São questões de grande relevância para as Ifes e não dá para aceitar assim, no escuro, no aguardo do que será decidido no futuro…
O MEC colocou o projeto em Consulta Pública por quatro semanas, inicialmente seriam apenas três, justamente durante o período de férias, mostrando a disposição para dialogar com a comunidade. A mesma disposição que fez com que reitores e diretores ficassem de fora do grupo de ‘inúmeros especialistas’ que, segundo o MEC, foram consultados ao longo dos últimos meses. Eu arriscaria dizer que todos esses especialistas são economistas de formação, atuam no mercado financeiro, e sem qualquer experiência com Educação Pública.
Mas o que me chamou mesmo a atenção foi a novidade do Future-se. O pouco que se falou de educação, de fato, está bem alinhado com os discursos do início do século XX, pelo menos uma parte deles. O pano de fundo do discurso do MEC do Future-se não é muito diferente do discurso do MEC da Reforma do Ensino Médio e da versão final da BNCC: vivemos num mundo de transformações, o mercado de trabalho também está em transformação e a escola deve preparar os alunos para esse mercado, de maneira que os alunos sejam capazes de se adaptar a essas mudanças aceleradas. Anísio Teixeira, lá nos anos 30-60, não falaria diferente: “Tudo está a mudar e a se transformar. Não há alvo fixo”(Teixeira, 2000, p.27). Sendo assim, a finalidade da escola seria “preparar cada homem para ser um indivíduo que pense e que se dirija por si, em uma ordem social, intelectual e industrial eminentemente complexa e mutável” (Teixeira, 2000, p.36). Lá se estava encantado com o desenvolvimento industrial, o progresso, e com o mercado de trabalho que parecia fervilhando, tudo era novidade. Aqui, como lá, fala-se de reinventar o indivíduo, que agora deve ser empreendedor, deve criar suas próprias oportunidades (como se houvesse oportunidades para todos). Pena que em 2019, o que Anísio Teixeira dizia lá no começo do século XX sobre democracia, tolerância e a formação para a cidadania, não seja levado em consideração. Nesse sentido, as ideias de Anísio são futurísticas demais para esse governo.
A verdade é que de educação se fala muito pouco nesse programa, mas sobra o economiquês, sobram os fundos de investimentos imobiliários, sobram as promessas de retorno financeiro para professores-empreendedores, sobram os modelos dos anos 80-90, de inspiração neoliberal, sobram bilhões para os fundos de investimento, sobram economistas. Faltam educadores, faltam propostas sérias para a educação. Ainda que não se fale diretamente, não me parece exagero dizer que esse programa caminhará a passos largos para a privatização das universidades federais. Apesar da abertura futurística, com estética e linguagem jovem, o conteúdo já nasce velho. Estamos apertando os cintos e voltando para o passado, de preferência para algum lugar do passado no qual as universidades eram privilégio de uns poucos. O Future-se mais parece uma reedição das Corporações de Ofícios. Afinal o presidente e o ministro já disseram que “a função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”. Arte, Filosofia e até mesmo Ciência? Seguindo a lógica de Weintraub, nada disso estará proibido, desde que pago com dinheiro do próprio bolso. Não esqueçamos que para o ministro, bolsa é coisa de vagabundo, por isso ele se orgulha de nunca ter tido bolsa. Que o CNPq esteja ameaçado, não pode ser mera coincidência.
Francine Ribeiro é professora no Instituto Federal campus Capivari.
(imagem de capa: Portal Vermelho)
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