“Soará enfim a hora do tempo bem-aventurado, do tempo que será semelhante às festas pascais, a hora em que, dissipadas as sombras no céu enfim aberto, os fiéis verão a Deus face a face. A partir desse momento, ninguém mais irá negar que o Cristo seja o filho de Deus. A terra inteira estará repleta da ciência do Senhor, com a única exceção das nações que o diabo porá a perder no fim do mundo. Esse estado será o terceiro, reservado ao reinado do Espírito Santo.”
Joaquim de Fiore
As visões e profecias milenaristas têm provocado certa celeuma e desestabilizado o contemporâneo, no que toca – de maneira mais particular – aos anseios e expectativas quanto ao ano que se inicia. Tornou-se comum o pensamento segundo o qual a própria humanidade iria se aniquilar e sucumbir, em decorrência de seus desencontros, tanto existenciais quanto no sentido de um desenvolvimento e progresso insustentável. São muitos os filmes a abordarem tal temática, sendo frequente também em livros, encontrando, particularmente, especial e intensa aderência no campo religioso, a descortinar e compor a visão milenarista. Chega-se então a duas percepções escatológicas: a primeira milenarista, calcada na crença no Juízo Final, a instaurar um tempo de felicidade e concórdia; a segunda catastrófica, enfatizando a extinção total da vida na terra e o castigo eterno. Neste último caso, talvez, um dos mais conhecidos videntes do armagedom seja o médico e alquimista renascentista Michel de Nostradamus. Mesmo pertencendo ao contexto do século XVI, é considerável o número de pessoas, nos dias atuais, que buscam em suas previsões uma explicação e compreensão para os acontecimentos que envolvem o contemporâneo, inclusive os sinais que evidenciam o fim dos tempos e com ele o ocaso da vida na terra, já prenunciados, de certa forma, nas visões de Nostradamus.
Em discrepância ao que normalmente se pensa, o milenarismo não se constitui como a espera de eventos extraordinários que ocorreriam no contexto do ano 1000 ou 2000. Em linhas gerais, o milenarismo consiste na crença de que haverá mil anos de felicidade na terra. Neste sentido, haveria um milênio – exatamente mil anos – antecedendo o Juízo Final, tempo no qual Jesus Cristo instauraria seu reinado, estabelecendo o verdadeiro paraíso na terra. Seria mil anos livres de toda dor e mal, mil anos de plena felicidade. Tal crença tem como fonte o livro do Apocalipse de São João e também passagens veterotestamentárias, especialmente as profecias de Daniel.
Em rápida projeção histórica, no contexto do medievo, no século XII, a perspectiva milenarista foi revigorada e impulsionada mediante as visões proféticas do abade Joaquim de Fiore. Em decorrência de seu discurso com forte apelo à violência e conteúdo escatológico, o milenarismo acabou por motivar muitas guerras santas e as próprias cruzadas. Com Joaquim de Fiore, o milenarismo alcançou grande representação, impactando e repercutindo em obras de importantes pensadores renascentistas – como, por exemplo, Dante Alighieri –, inclusive inspirando e motivando as viagens de Cristóvão Colombo. Mesmo a América, quando invadida pelos colonizadores europeus, passou a ser compreendida sob o signo do milenarismo, a identificá-la a partir da visão do paraíso, reforçando especulações e esperanças escatológicas.
Ora, o milenarismo consubstancia-se, então, na leitura apocalíptica, a profetizar o fim do mundo e anunciar a aurora de um tempo messiânico. Para uma época marcada, sobretudo, pela carência de análises críticas e problematizadoras e, ao mesmo tempo, tão desfigurada de esperanças, as expectativas próprias do milenarismo encontram e desfrutam de grande prestígio e credibilidade. Inexoravelmente, a perspectiva milenarista acaba por obscurecer o momento que poderia compor-se como um importante processo de revisão tanto social quanto existencial. Deste modo, o milenarismo não deixa de estar permeado por certa nostalgia do futuro, a despontar como crítica à realidade que define o presente. A saudade de uma idade de ouro, representação arquetípica presente no imaginário humano. Interessante ressaltar que o problema fundamental não se encontra nas leituras milenaristas em si, todavia, na compreensão limitada e redutora que se faz delas. Típico de uma sociedade superficial e simplista, alheia às nuanças metafóricas e simbólicas que compõem o jogo de linguagem próprio do campo religioso.
Todo início de ano não deixa de ser, de certa maneira, tomado por grandes expectativas – por isso a singular abertura para as visões milenaristas. O ano de 2012 carrega e contempla, particularmente, uma dimensão simbólica, no que toca às previsões milenaristas. No entanto, em discrepância ao tom apocalíptico que dinamiza o milenarismo, o prenúncio de um novo ano pode se compor como um tempo propício para fazer um profundo balanço da trajetória existencial percorrida. Não só em relação ao ano finalizado, mas de toda a vida. Para além de leituras apocalípticas, devem-se avaliar, particularmente, as escolhas e decisões tomadas. De maneira metafórica, é o momento de revisar o caminho já traçado e vislumbrar perspectivas de reestruturação, acenando para novas alternativas e possibilidades existenciais. Ultrapassando as leituras que anunciam o armagedom, o novo ano que chega pode ser uma imprescindível oportunidade para se arrumar a casa – imagem e representação de nossa morada interior –, recompondo e se libertando de tudo que for ausência de perdão e ressentimento. Tal postura introspectiva e reflexiva contempla, sobretudo, um aspecto antropológico, a alcançar dimensões essenciais do humano. O início do novo ano pode, definitivamente, compor-se como uma singular oportunidade de contemplação e avaliação do projeto pessoal e político de vida. Vislumbrando perspectivas mais coerentes e profundas, torna-se fundamental, claramente, que todo o processo de intensa revisão de vida, não seja pontual e esporádico – reavivado apenas pela ansiedade e temor momentâneo –, mas equilibrado e ponderado, suplantando receios e temores atinentes a concepções escatológicas milenaristas ou simplesmente catastróficas.
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O autor:
Adelino Francisco de Oliveira é filósofo. Mestre em Ciências da Religão e professor de Ética e Teologia da Faculdade Dom Bosco de Piracicaba.
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Acredito que o texto reflete de maneira brilhante as relações humanas com o simbolismo e como a possibilidade de um recomeço é fundamental para o homem encontrar-se consigo e caminhar amparado por valores e jogando para o passado os erros.
Prozado De Marco,
É interessante como se torna mais fácil retirarmos a dimensão histórica dos eventos, atribuindo aos acontecimentos uma dimensão mística… Assim, fugimos de nossa responsabilidade de agentes históricos.
Esteja bem!
concordo plenamente … deixar no passado nossos erros
Meu amigo Adelino.
Embora um pouco ignorante de minha parte no conteúdo referente a alguns filósofos, eu vejo as catastrofes sempre acontecendo na Terra, pois a mesma encontra-se sempre em mudanças, mas o unico que não muda é a mente do ser que chamamos de humano, que é egoista, que não se importa com seu semelhante e também que não faz nada para mudar, esse sim, pode ocassionar uma catastrofe e fazer que a humanidade desapareça da face da Terra. Portanto se isso não ocorrer vai demorar mais de milenios para que essa mente mude, e comece a tratar com dignidade essa especime chamada de Humano.
Meu amigo Adelino as suas palavras e seu modo de pensar e escrever estão de Parabéns, continue sendo essa pessoa maravilhosa.
Desculpe algum erro e concordância de português, como você sabe não é o meu forte.
Abraços.
Prof. Claudinei Bigaton
Eng. Mecânico e Físico
Estimado Prof. Bigaton,
Agradeço pela interlocução… Muito me honra a sua leitura atenta de minha reflexão… O professor analisa muito bem, o ser humano é responsável pelos grandes dramas que se encontra… e o egoísmo, sem dúvida, é a doença perversa de nosso tempo…
Esteja bem!