A Festa do Divino e o Bodo aos Pobres

A Festa do Divino e o Bodo aos Pobres

A Festa do Divino Espírito Santo remonta a uma antiga tradição do catolicismo popular, tendo origem ainda em Portugal, no século XIV. É uma festividade que está presente em diversas regiões do Brasil, compondo um aspecto importante e riquíssimo do imaginário religioso e da cultura popular. Além do profícuo debate teológico, exaltando o lugar e a representação da terceira pessoa da Santíssima Trindade, a Festa do Divino, como é popularmente conhecida, registra uma profunda sensibilidade social, na medida em que se organiza em torno de banquetes coletivos, nos quais a comida, sempre em abundância, é partilhada, particularmente com os pobres.

Em sua ritualidade e profundidade simbólica, a festividade em torno do Divino Espírito Santo remete a uma experiência originária de fraternidade e comunhão. Em sentido teológico, o mistério trinitário manifesta-se como genuíno modelo de comunidade, sendo inspiração para o cotidiano das relações humanas. Sem nenhum tipo de concepção hierárquica, da revelação trinitária desdobra-se a perspectiva de uma sociedade de iguais, livre de qualquer conotação de superioridade e preconceito.

Há uma sabedoria perene, uma dimensão profundamente pedagógica que permeia a Festa do Divino. A peregrinação da Bandeira e a dinâmica ritual do Pouso do Divino fazem alusão à trajetória existencial, que deve ter sempre a partilha e o cuidado para com os pobres (designado bodo aos pobres) como perspectivas centrais. A mensagem anunciada é que as realidades de injustiça, pobreza e exclusão social, que caracterizam as estruturas da sociedade contemporânea, não se colocam em conformidade com a verdade trinitária, que é sempre justiça, comunhão e fraternidade. Da Festa do Divino desvela-se as bases para uma nova organização social, pautada nos princípios de solidariedade, igualdade e direito.

Na lógica do consumo, mediante jogos de poder,massificação e alienação, há uma explícita tentativa de se reduzir a Festa do Divino a mero entretenimento, com forte apelo comercial ou mesmo transformá-la em simples palanque aberto, com fins eleitoreiros, carente de religiosidade e sem compromisso com os mais pobres. Este tipo de movimento, que busca instrumentalizar as expressões populares, tende a destruir toda dimensão simbólica e cultural da festividade, esvaziando seu potencial teológico, formativo e transformador.

Em contraposição ao característico anonimato dos grandes centros urbanos, a Festa do Divino recria o lugar sagrado que possibilita o encontro, na partilha da reza e do pão, relembrando que a existência deve vislumbrar o vínculo solidário entre as pessoas, sem competição nem preconceitos. Nesta singular atmosfera cultural, a existência pode contemplar outro ritmo, distinto da rotina de exploração do mundo do trabalho. A vida pode alcançar um sentido mais alto,suplantando a opressão do capital concentrado.O sentimento de pertença a uma comunidade, a percepção de que a vida é um entrelaçamento e que todos são corresponsáveis pelo bem comum são dimensões políticas que se desdobram da Festa do Divino e podem ser melhor compreendidas a partir dos vínculos locais, no cotidiano da municipalidade.

Em um contexto em que a sociedade parece ter se perdido em cinismo e hipocrisia, assumindo uma postura de complacência com perversos processos de regressão de direitos sociais, rompendo com os princípios éticos de fraternidade e comunhão, torna-se especialmente interessante e sugestivo se resgatarem os sentidos mais genuínos da tradição da Festa do Divino.A identidade brasileira, forjada no longo processo de miscigenação e sincretismo, ainda pulsa nas expressões da cultura popular, reafirmando os vínculos de solidariedade e ressaltando que não há espaço para projetos não democráticos, de viés neofascista.Talvez a cultura brasileira guarde ainda dimensões profundas, capazes de suplantar todo mal que se instaurou no âmbito das políticas governamentais, implementadas em detrimento do povo, dos direitos fundamentais e em nome, tão somente, da consolidação dos interesses de uma economia de mercado, sem dignidade nem coração.

 


 

 

 

 

 

Adelino Francisco de Oliveira é filósofo e professor no Instituto Federal campus Piracicaba.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *