Fé ou Consumismo?

Doutorando pela Universidade de Braga – Portugal -, mestre em Ciências da Religião, filósofo e professor da Faculdade Salesiana Dom Bosco de Piracicaba, Adelino Francisco de Oliveira escreve mensalmente no Diário do Engenho (sendo um de nossos articulistas com maior número de acessos).  Aproveitando o período natalino, Adelino conversou com o Diário sobre a dimensão do Natal atual e sobre consumismo e espiritualidade – dentre outros temas pertinentes à época).

Saborei esse delicioso bate-papo! E um feliz Natal para você!

1. [D.E]: Adelino. Estamos no fim de semana em que se celebra o Natal. Como você, enquanto um estudioso das religiões, vê o consumismo que se impõe nesta época? Você acha que a dimensão religiosa perde para a dimensão mercadológica?

[ADELINO]: Este é um ponto, de fato, difícil, delicado e aterrador! A lógica do consumo tem assumido proporções inimagináveis. Hoje, há uma perversa relação entre consumo/conforto e felicidade, como se a felicidade fosse indissociável de uma vida de consumo. Neste ponto, a proposta religiosa – o sentido profundo do Natal – corre o sério risco de ser obscurecida. O consumismo exacerbado, sem dúvida, é um grande mal. Mas não considero ainda que tudo esteja perdido. Há hoje uma consciência crescente de que a lógica do consumo e do mercado não é capaz de atribuir sentido à vida. Há uma consciente crescente de que o modelo de desenvolvimento econômico pautado em uma perspectiva de pleno consumo é iníquo e insustentável. É preciso então que retomemos o sentido das coisas e a celebração do Natal compõe-se como uma oportunidade para voltarmos ao que é essencial.

2. [D.E]: Sobre o Natal. Pode-se determinar a partir de que momento histórico o nascimento do Cristo passou a ser celebrado de maneira mais intensa? Pode-se reconhecer ou apontar algum Papa ou alguma figura religiosa como um “incentivador” dessa tradição?

[ADELINO]: A festa do Natal contempla também uma dimensão pedagógica. Isso significa que por meio da celebração a comunidade cristã ao mesmo tempo em que comemora o momento da encarnação divina, também ensina, catequeticamente, os passos da revelação. Neste sentido, podemos situar no contexto do medievo o fortalecimento da festa do Natal. O próprio São Francisco de Assis, com a construção do primeiro presépio, situa-se como um marco na celebração natalina. No entanto, a data do dia 25 de dezembro remonta ao período de formação da cristandade, no final da Antiguidade. Originalmente, na Igreja primitiva, o nascimento de Jesus era celebrado no dia 06 de janeiro.

3. [D.E]: Você acha que o Natal é uma “festa” que transcende o universo cristão? O período natalino toca de alguma forma, no seu modo de ver, até mesmo quem não é religioso ou pertence a uma religião não cristã?

[ADELINO]: Penso que sim. Os valores cristãos assumem uma perspectiva ampla e universal. Na medida em que a cultura ocidental acabou por ser propagada para todas as partes do mundo, sendo inclusive modelo para diversas culturas e sociedades, a festa do Natal também alcançou tal projeção. Os princípios cristãos de solidariedade e amor ao próximo alcançam e guardam um significado perene. Não é preciso ser cristão para compreender e aceitar a profundidade de tais princípios. Agora, é preciso ressaltar que, para o cristão, o Natal representa teologicamente a comemoração da encarnação de Deus – Emanuel – que é Deus conosco. Deus, em um gesto de sublime amor, vem habitar entre a humanidade.

4. [D.E]: O que mais te chama a atenção na cena do presépio, na cena da natividade? Como conceber de forma mais plena e profunda o lado místico do nascimento do Cristo?

[ADELINO]: Interessante que o relato do nascimento de Jesus está recortado por simbolismos e imagens, de maneira a explicitar um novo horizonte teológico a balizar o cotidiano humano. As dimensões de fragilidade e pueridade infantil – Deus que se desveste da perspectiva de onipotência –; a manjedoura, os animais e a estrela – o novo rei nasce sob o signo do total despojamento, estabelecendo comunhão com toda a criação –; a cidade de Belém – herança e superação da aliança davídica –; a presença dos reis orientais – a aliança em Jesus alcança toda a humanidade, a salvação assume uma perspectiva universal.

Veja, então, que há no presépio elementos de profunda representatividade, capazes de nos despertar para uma nova dinâmica de relações com o mundo, com a natureza, com o próximo e também com o próprio Deus.

5. [D.E]:  Costuma-se dizer que o Evangelho de João é o Evangelho que tem, dentre os evangelhos, um maior caráter místico. Sendo você um especialista e um estudioso do desse Evangelho, comente um pouco então sobre o Cristo descrito por João.

[ADELINO]: O Evangelho de João, dentre os quatro evangelhos, é sem dúvida o que traz uma teologia mais densa e elevada. O que chama atenção em João é a clareza quanto a origem divina de Jesus Cristo e sua missão. Por isso, dizemos que João apresenta uma cristologia elevada. Para a comunidade de João, Jesus é a revelação plena de Deus, que é amor. Deus é amor e devemos manifestar Deus ao próximo, por meio de gestos de amor e serviço.

Outro aspecto fundamental da teologia joanina consiste no rompimento com certas estruturas de poder e dominação próprias do judaísmo antigo. Neste ponto, o Evangelho de João apresenta Jesus para além do judaísmo. Em João, Jesus estabelece uma relação de profunda amizade e proximidade com seus discípulos. Assim, a Igreja inspirada em João constitui-se a partir da comunidade de irmãos, livre de hierarquias. No quarto evangelho, as mulheres são proeminentes discípulas – cabe a elas anunciar Cristo ressuscitado.

(“celebração do Natal compõe-se como

 uma oportunidade para voltarmos ao que é essencial…”)

 

6. [D.E]: Enquanto estudioso, como você está vendo a atuação do Papa Bento XVI? Que balanço você faz desse papado até o momento? A figura do Papa anterior, João Paulo II, tende a ofuscar de alguma forma o brilho de Bento XVI?

[ADELINO]: O Papa Bento XVI é, sem dúvida, um grande intelectual e um profundo teólogo. Desde o início de seu pontificado, Bento XVI tem assumido a bandeira de recolocar a Igreja nos trilhos da grande tradição. Tal perspectiva tem consequências tanto teológicas quanto pastorais. Assim, sob a ótica de princípios tradicionais do cristianismo é que o Papa Bento tem enfrentado os temas do contemporâneo, temas delicados como o aborto, a homossexualidade, o divórcio, a eutanásia… De certa forma, o Papa tem procurado dar uma resposta a um cristianismo e a uma Igreja que se encontra em crise, inclusive de credibilidade e de identidade.

É difícil para Bento XVI superar o carisma de seu antecessor, João Paulo II, que foi um Papa muito popular, adorado por todos. Além de ser um habilidoso articulador e interlocutor político. Mas não vejo Bento XVI muito preocupado com isso.

A questão é que vivemos um tempo delicado para o cristianismo. No Brasil, por exemplo, vivemos a efervescência de uma Igreja cindida em movimentos, sem muita clareza teológica. A teologia da libertação perdeu espaço e adeptos, por outro lado, não surgiu nenhuma outra perspectiva teológica para alicerçar e fundamentar a espiritualidade cristã. Sobrou espaço para uma espiritualidade de autoajuda, imediatista, com rasa e limitada leitura social, pautada em uma visão de prosperidade e retribuição. São muitos os desafios para a Igreja e o Papa Bento XVI sabe bem disso.

7. [D.E]: Voltando a falar sobre o Natal. Você acha que é possível buscar e viver uma dimensão mais espiritualizada nesta época? Há pessoas (religiosas, até) que dizem que a festa natalina é um exagero e que o Natal deve ser todo dia. Você concorda com isso?

[ADELINO]: Considero que a liturgia que envolve e reveste o tempo do Natal – desde o período do Advento – compõe-se como um forte convite para a interiorização. Devemos compreender a celebração do Natal como um rito de passagem, com sentido antropológico. Neste ponto, o Natal enquanto memória do nascimento/encarnação de Deus configura-se como um momento singular e fundamental de revisão e reflexão existencial. Humanamente precisamos, de fato, desses momentos de contemplação interior, a nos remeterem ao que é essencial na existência.

Agora, é óbvio que a liturgia do Natal nada tem haver com excessos – de consumo. É um tempo que pede sobriedade, silêncio interior, despojamento.

8. [D.E]: 2011 está terminando. Que balanço você faz desse ano? Foi um ano difícil?

[ADELINO]: É difícil avaliar todo um ano. Bem, considero 2011 como um ano muito interessante, tomado por boas possibilidades. Foi o ano, por exemplo, da implementação do Diário do Engenho… (risos).

Foi um ano marcado por graves questões no campo da política e da economia. A crise econômica global agravou as desigualdades sociais. A corrupção talvez tenha sido mais exposta, apesar de estar longe de ser superada. Contudo, 2011 não deixou de ser um ano de esperança. Entre nós, alguns temas ganharam maior projeção e espaço, como a temática dos direitos humanos, a dignidade da relação homoafetiva, a reflexão acerca da responsabilidade social, o fortalecimento dos embates em torno da ética, a perspectiva da inclusão, a urgência da sustentabilidade… No balanço, 2011 foi um ano de avanços… Mas, sem dúvida, há muito ainda a se conquistar.

(“No Brasil, por exemplo, vivemos a efervescência de

 uma Igreja cindida em movimentos, sem muita clareza teológica…”)

 9. [D.E]:  E em relação a 2012. Quais são suas expectativas?

[ADELINO]: 2012 se destaca, primeiramente, por ser um ano de eleição. Novamente seremos chamados às urnas… outra oportunidade de redefinirmos o quadro de políticos. Talvez consigamos escolher líderes políticos mais competentes, sensíveis aos problemas sociais e comprometidos com a ética.

Localmente, temos também que responder a grandes desafios, no campo da educação, da saúde pública, da habitação, da violência, do trânsito, da cultura como direito de todos. A definição do novo prefeito deverá levar em consideração tais pontos.

No que toca a religião, 2012 já se desvela como um ano de expectativas místicas. A visão apocalíptica e milenarista ainda alcança muitos seguidores. Contudo, com uma leitura mais crítica e pé no chão, teremos uma campanha da fraternidade forte e problematizadora, com o tema Fraternidade e Saúde Pública, e o lema “Que a saúde se difunda sobre a terra”, inspirado em Eclo. 38,8.

10. [D.E]:  Um feliz Natal para você Adelino! E um excelente 2012! Qual a sua mensagem para o leitor do nosso Diário?

[ADELINO]: Agradeço pela oportunidade e pela parceria. Desejo e espero que a experiência do Natal de Jesus, o Divino Salvador, revigore nossas esperanças. Que possamos compreender e experienciar a beleza profunda do Natal, a se descortinar no movimento de Deus que se revela como Emanuel (Deus conosco). A encarnação guarda, em sua teologia, um sentido pedagógico. Ao assumir a condição humana, Jesus nos ensina o sentido do próprio existir, como devemos viver a vida, inclusive em sua cotidianidade. Que possamos celebrar intensamente todo o mistério que envolve e dinamiza o Natal, aprendendo com Deus as possibilidades de nossa humanidade, superando uma condição esvaziada, perdida, cindida para uma existência cheia de sentido e possibilidades. Desejo, finalmente, um Natal renovador e um Novo Ano repleto de boas possibilidades para todos!

6 thoughts on “Fé ou Consumismo?

    1. Estimado João,

      Agradeço por seu comentário pontual. Você sabe bem o quanto é difícil dizer algo que seja de fato relevante… vamos avançar nessa linha de reflexão…

      Esteja bem!

  1. Meu caro amigo e irmão Adelino.
    Em primeiro lugar, meu sincero respeito pelo seu conhecimento teológico e sua capacidade de exposição de fácil entendimento. Tudo é exposto com muita clareza, convencendo o leitor a se interessar pelo assunto. Talvez, um dia, o povo passe a se interessar mais pela religião e espiritualidade.
    Com relação ao tópico que o Natal deveria ser todos os dias, sou adepto dessa teoria. Qual o espirito do Natal? Não é época de reflexão,mudar nossa rota de vida, amar mais nosso próximo, fazer justiça social,arrependimento de maus atos praticados? Por que temos de esperar o Natal para tomarmos uma atitude? Penso que: “O Natal é todo dia. Depende de cada um de nós”.
    Quanto a parte religiosa, acredito que a tradição deve ser mantida e lembrada. Não confundir o advento, com o comércio cada vez mais fincado em Papai Noel.
    Finalizando, aceite meus parabens pelas respostas bem colocadas, agradecendo sempre sua amizade.
    Feliz Natal e um 2012 com muita Saúde, Luz e Paz.
    Um forte abraço.
    Jayme Rosenthal

    1. Prezado Jayme Rosenthal,

      Agradeço por vossa deferência… Vossa reflexão alcança e define bem a maneira que deveríamos olhar a própria vida, para além de momentos pontuais. Considero o diálogo aberto e transparente como uma via privilegiada para a superação de uma visão banal sobre a vida…

      Esteja bem!

    1. Querida Esther,

      É bom saber que apesar de sua tenra idade você já tem se preocupado com a leituras de temas e questões tão fundamentais. É também muito bom e importante saber que você tem acompanhado meu trabalho. Força e perseverança em seu processo de formação.

      Esteja bem!

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