Esse ateu que me habita, profundamente piedoso,
religioso como o diabo, incrédulo de todas as verdades santas,
amaldiçoa todos os artistas da Renascença,
que produziram aquelas abominações
de deuses bombados, Jupiteres de fancaria, cavalgando nuvens,
soltando raios pelas mãos e fumos pela cabeça,
cercados de exércitos – exércitos! – poderosos como quê,
e as cenas celestiais, patéticas, cheias de figurinhas carimbadas,
e todos aqueles olhares pietistas, aqueles gestos,
aqueles panejamentos voejantes, pairando sobre nossas cabeças,
todo aquele horror cafona, ridículo, teologicamente desastroso,
e as explosões de ouro, de mármores, pratas, arminhos
– argh! –
deem-me um homem, um!, que seja Deus,
mas que seja também apenas homem, como eu,
que não se assente num trono, que nos fale como gente,
que nos permita crer nele, sem tremer nem temer
ser engolidos por eventos cósmicos que não entendemos,
apenas crer, e compreender que é o Amor o quinto elemento,
mas, pelo amor de Deus, enviem-me qualquer coisa,
que ponha de joelhos esse velho ateu,
que se apresenta diante do altar sagrado
carregado de dúvidas, impurezas e pecado,
salvem-me, homens desse século, mostrem-me
uma teologia nova, que não se carregue de glória,
de nomes superlativos, de todo o inatingível,
sou apenas humano, como Jesus antes de ser Cristo
(mas ele sempre foi – e eu, pra que sirvo?),
eu, esse crente ateu, incorrigível, pré-condenado
ao fogo eterno, que não acredito, esse ateu dos infernos,
e que se quer padre, santo, imaculado mas falível,
esse destino de cartas marcadas, que nasceu
e não tem como fugir à sina, maldita e incontornável
de ser humano, parido, caído, corruptível,
mas que me agarro ao crucifixo que trago ao pescoço,
como os marinheiros do Argos, e espero pelo estrondo
do choque entre Sila e Caribde, que me reduzirão a pó,
ou me conduzirão a uma nova era, ainda em vida,
final, maravilhosa e indizível. (2-2-25)
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.