Escolhendo os pregos

As primeiras gotas que caiam começaram a traçar um caminho sobre o vidro empoeirado da janela. O som suave da propícia garoa era um bálsamo para os ouvidos de quem queria silenciar o coração.

A noite chegou como um presente esperado no Natal. Ela não precisava de mais nada além de um bom banho e uma xícara de chocolate quente. Lençóis limpos e meias novas também seriam muito bem-vindos.

Naquela manhã, após ter acordado antes do galo cantar, tentou permanecer em sua cama, afinal, não havia razões para levantar-se tão cedo. Contudo, desistiu rapidamente da tentativa.

A falta de energia não lhe permitiu tomar um banho quente e, entre as gotas geladas que caiam em sua cabeça, lembrou-se de quando era uma criança, e dizia a si mesma que tentaria ser mais ponderada em seus julgamentos sobre as pessoas e as coisas da vida.

Ao chegar ao trabalho, seus pensamentos, mãos e tudo mais foram tomados pelos assuntos burocráticos de sua profissão. As pilhas de papéis sobre sua mesa mostravam que o dia não seria fácil.

Em um momento de distração, a caminho do bebedouro, ouviu a conversa de dois colegas de trabalho que falavam sobre um terceiro funcionário.

– Não é possível que, mesmo depois de dois anos exercendo a mesma função, ele ainda não tenha aprendido. Eu já entendi o esquema em duas semanas de trabalho! Isso, para mim, é preguiça ou burrice mesmo!

Aquela conversa não saiu de seus pensamentos durante toda a manhã. Achou injusto, já que os outros dois também cometiam falhas. Logo após o almoço resolveu tomar uma atitude: juntou todos os papéis que ainda restavam sobre sua mesa e dividi-os em duas pilhas; colocou uma em cada mesa dos funcionários que encontrou pela manhã.

Ambos não entenderam o que estava acontecendo:

– O que é isso? Esse trabalho é seu! Não vê o quanto já tenho de fazer por aqui?!

– Esses trabalhos são falhas que vocês vêm cometendo há dois anos. Não sei se é por preguiça ou burrice mesmo, mas já passou da hora de aprenderem.

Outros funcionários do setor viram o ocorrido e logo o assunto chegou aos ouvidos do chefe que a chamou para uma conversa.

– Soube o que aconteceu hoje. Por que fez aquilo? – questionou-a.

– Sabe, senhor, quando eu era pequena e fazia alguma coisa errada e precisava ser repreendida, minha mãe era um pouco rude demais e aquilo me magoava muito. Mas quando era minha avó que o fazia, ela era delicada com as palavras, sabia o quão poderosa elas são, mas não deixava de ser rígida. Um dia, ela não conseguiu agir com ternura e, vendo o que tinha feito, levou-me até o quartinho onde meu avô guardava suas coisas e todos os dias tentava construir algum objeto de madeira.

– Está vendo seu avô? – dizia ela – Passa horas escolhendo o tamanho do prego que usará. Ele sabe que se colocar o prego errado, não poderá voltar atrás, pois o buraco já estará feito. As palavras são assim, minha querida, como pregos. Se grandes demais, abrem um buraco que jamais fecharemos, mesmo que depois tentemos colocar pregos menores. Desculpe-me por hoje, escolhi mal meus pregos.

– Senhor, eu tentei fazer hoje o que aprendi com minha avó, mas percebi que não adiantaria escolher o tamanho ideal dos pregos, era preciso retirar os pregos enferrujados, então eu os troquei. Acho que essa era a parte da história que minha avó disse que eu teria de aprender sozinha.

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Fernanda Rosolem é jornalista, pedagoga e musicista

5 thoughts on “Escolhendo os pregos

  1. Que bom ter contribuído de alguma forma para uma reflexão. Realmente, não é nada fácil escolher as palavras certas, na hora certa. Mais difícil ainda é calar-se. O silêncio será sempre desafiador. Agradeço os comentários e o carinho de vcs! Um forte abraço.

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