Escolas Cívico-Militares – entre as piores heranças da ditadura

Escolas Cívico-Militares – entre as piores heranças da ditadura

Todos em fila, obrigatoriamente meninos com cabelos cortados rente ou meninas com eles presos, aprendendo a obedecer, sujeitos a serem inclusive levados a delegacias em caso de infrações dentro dos espaços escolares, como denunciou o Ministério Público com fatos que vieram a público em três Estados.

Foi justamente com base nesses princípios de rígida hierarquia, férrea disciplina, controle de determinados comportamentos que sonhou o governo Bolsonaro ao instituir, em 2019, o programa de criação das escolas cívico-militares (PECIM). Basicamente uma pública contraposição a princípios constitucionais da educação civil, que elencam, entre outros, igualdade de condições para acesso às escolas, gratuidade do ensino, liberdade de expressão do pensamento, pluralismo de ideias e gestão democrática. Expressão máxima de controle ideológico, até onde tais escolas podem manipular as atuais gerações?

O PECIM, em sua concepção, era aberto à adesão de escolas públicas municipais, estaduais e distritais. Aí começavam os problemas: todas seriam geridas pelo Ministério da Educação e Ministério da Defesa, a quem caberia a seleção e contratação de militares aposentados para ministrarem aulas e dar apoio pedagógico-administrativo, com remuneração bem acima do que recebe a maioria dos professores das escolas públicas. Em caso de “necessidade”, o Ministério da Defesa poderia recrutar também “contingente efetivo da polícia militar ou do corpo de bombeiro militar”.

Apostando num milagre que a disciplina imposta por um núcleo militar na direção escolar poderia gerar – naturalmente na perspectiva de controle e obediência – a prioridade seria de instalar tais unidades em áreas de maior vulnerabilidade social. Traduzindo, onde não houvesse muitas alternativas de escolha para que crianças e adolescentes tivessem a seu dispor vagas no ensino público. Melhor manipular justamente populações onde a violência policial já penetrara no cotidiano, onde as condições de funcionamento de outras instituições de ensino são de carência profunda, onde faltam professores. Mais fácil, portanto, vender o privilégio de se ter uma instituição dita de maior qualidade e recursos, como tanto insistiu o governo Bolsonaro.

A adesão inicial foi menor do que pretendia o governo. Em 2022, as estatísticas oficiais indicavam a criação de 216 unidades ligadas ao PECIM. Mas, para além delas, dentro das competências estaduais, havia ao menos 494 escolas cívico-militares ligadas à Polícia Militar ou ao Corpo de Bombeiros.

Em julho de 2023, o governo Lula extinguiu o programa. Segundo o MEC, apenas 0,14% das escolas brasileiras haviam aceitado ser militarizadas. Pesquisa do Data Folha indicava, à época, que 75% dos brasileiros confiava mais em professores civis do que em militares dentro das escolas. Em Piracicaba, em assembleia promovida em fevereiro de 2022, a comunidade escolar do bairro Vila Sônia rejeitou por unanimidade a proposta de instalação da escola cívico-militar na EE. Professora Maria de Lourdes Consentino.

No entanto, a reação daqueles alinhados ao discurso em defesa da presença militar na educação do país veio rápida – era preciso preservar a ideia e os espaços que já haviam sido iniciados. Ao final de 2023, somente no Paraná existiam em funcionamento 312 escolas da rede básica no modelo cívico-militar. Em Goiás, eram 76, e, em Minas Gerais, o modelo cívico-militar é ofertado em escolas dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio que atendem cerca de 6 mil estudantes.

No último dia 7 de março, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, encaminhou a Assembleia Legislativa o projeto de seu governo para implementação das escolas cívico-militares. A expectativa é de criação de ao menos 100 delas, a começarem a funcionar já no próximo semestre. Menos de 48 horas depois, o conservador jornal “O Estado de São Paulo”, publicou editorial denominado “Educação não é caso de polícia”, acusando o governo Tarcísio de Freitas de se importar mais em “intimidar os alunos com policiais do que estimulá-los a ler e pensar” e fazendo uma defesa sem meio-termo sobre o tema da laicidade da educação: “a educação pública deve ser civil”.

Parece ainda faltar à sociedade a devida compreensão do perigo e da ameaça de ter escolas militarizadas atendendo aos filhos. Entregá-los ao controle e definição de normas e padrões militares definirá grande parte de seu futuro – onde pouco cabe de capacidade crítica, de iniciativa pessoal, de independência intelectual nas escolhas. Tudo que o Brasil não pode aceitar que se repita, como muitos ainda se lembram como efeitos do golpe de 64. Como negar a força da educação especialmente diante do Brasil atual, extremamente polarizado, onde permanece contínuo o combate a práticas democráticas essenciais?


Beatriz Vicentini é jornalista e coordenadora/editora do livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior”. Em parceria com o Diário do Engenho, editora esta série para o site.

 

 

 

(Foto: Catarina Chaves/MEC. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2022/janeiro/divulgados-estados-e-municipios-contemplados-pelo-programa-nacional-das-escolas-civico-militares)

 

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