Picasso escreveu certa vez que um artista não deve explicar ou descrever sua obra. Um quadro, afirmou ele, não é feito para ser descrito, mas para ser visto e apreciado. A sugestão, a impressão, a interpretação da obra de arte devem, assim, ficar por conta do apreciador – seja ele um entendido no assunto ou um simples amante da arte. E, seguindo as cores em tela – propostas pelo pintor – podemos dizer que é função dos críticos, dos estudiosos ou dos teóricos das artes apresentarem sua visão sobre os objetos artísiticos, ajudando ao apreciador comum ou mesmo aos demais estudiosos a interagirem com tais objetos, a mergulharem com mais profundidade no mar sem-fim de suas cores, de seus sons, de suas letras e de seus sentidos (possíveis). Porém, jamais deverá o estudioso se sobrepor a arte ou ao artista estudado, atrevendo-se a explicar ou descrever como essa ou aquela obra foi (ou teria sido?) plenamente pensada ou concebida. Jamais um teórico das artes deverá fechar os portões da interpretação do objeto artístico, proibindo que os demais apreciadores avancem pela obra de arte utilizando, para isso, suas próprias chaves.
Nesse sentido, como podemos aqui propor um texto que apresente, mesmo que sinteticamente, a vida e a obra de um compositor como Ernst Mahle? Como arriscar-se a comentar, a descrever ou a apresentar o maestro e sua obra, sem cair nas pausas da admiração ou se exceder em fermatas da narrativa e da descrição do objeto artístico? Como tocar com segurança as notas de sua biografia? Como apresentar sua obra sem deixar que o tom mítico do discurso verbal encubra a realidade sonora de suas composições? Ou pior: como descrever, com palavras, o mundo sonoro de Mahle?
Talvez se começássemos essa inglória tarefa por comentar, mesmo que apenas parcialmente, sobre a formação musical e sobre os estudos empreendidos pelo maestro. Façamos a tentativa: Ernst Mahle nasceu no ano de 1929, em Stuttgart, Alemanha. Chegou ao Brasil em 1951, naturalizando-se brasileiro em 1962. Foi aluno de composição de Johann Nepomuk David, na Alemanha, e de Hans Joachim Koellreuter, no Brasil. Estudou também no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e frequentou cursos internacionais de férias em Lucerna, na Suiça, Darmstdat, ex-República Federal da Alemanha, e Salzburgo, na Áustria – tendo, nesses cursos, estudado com Messiaen, W. Fortner, E. Krenek, L. Von Matacic, R. Kubelik e Mueller-Kray.
Descrição posta, é evidente que nos restam ainda todas as perguntas que, ao início deste texto, tínhamos a pretensão de tentar responder. Mas sejamos persistentes, tentemos mais um pouco. Reflitamos agora sobre a vida do maestro em Piracicaba. Em reconhecimento ao seu extenso trabalho em prol da juventude, Mahle recebeu, em 1965, o título de “Cidadão Piracicabano”. Foi também co-fundador da Escola de Música de Piracicaba “Maestro Ernst Mahle”, onde exerceu o cargo de Professor e Maestro das Orquestras de Câmera e Sinfônica da Escola, por mais de 50 anos, sendo também o idealizador do concurso “Concurso Jovens Instrumentistas”. Seus alunos músicos, espalhados pelo Brasil e pelo mundo, são imediatamente reconhecidos – independentemenre da cidade ou país em que estejam – quando se apresentam com oriundos de sua escola de música.
Alcançamos o nosso intento? Podemos dizer que começamos a perceber com um pouco mais de certeza quem é o mastro Mahle e qual o valor de sua obra? Talvez nos situaríamos melhor se abordássemos sua vida de compositor e lembrássemos que Mahle foi vice-presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, sendo também membro da Academia Brasileira de Música. Talvez nossas ideias clareassem mais se disséssemos que os críticos de arte atestam a qualidade de sua música, reconhecendo sua técnica irrepreensível. Talvez pudéssemos delinear melhor a obra de Mahle se lembrássemos que ele foi premiado em vários concursos de música orquestral, tanto por conta de seu repertório camerístico como por sua composição sinfônica – e que em 1995 o maestro recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Por fim, ainda talvez seja necessário deixar claro que sua música é internacionalmente reconhecida – sendo que muitas de suas composições já foram executadas por excepcionais orquestras do mundo todo.
Enfim, e se tudo isso disséssemos sobre Ernst Mahle e sobre sua obra, com certeza nada ainda teríamos sido capazes de dizer, de informar, de descrever ou de instruir. Mais do que as notas de um discurso, neste caso vale mais o discurso das notas. Afinal, nada do que se possa comentar sobre o maestro ou sobre sua obra poderá ser melhor dito do que por meio da audição imediatada e constante de sua música. É somente ouvindo a música de Mahle que poderemos começar a ter a noção de que o maestro ocupa lugar privilegiado na história da música contemporânea clássica-erudita. Se – como ensinou Arthur Schopenhauer – dentre todas as artes (a das palavras, a das pedras ou das tintas) é a música a que ocupa posição privilegiada (pois diz sem dizer e mostra sem objetivamente mostrar), é somente ouvindo a música de Mahle que poderemos nos atrever a nos aproximarmos de sua verdadeira essência artística e humana: germânica por ser brasileira, piracicabana por ser universal.
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O texto acima, de autoria de Alexandre Bragion, foi lido por Érico César Bisson durante homenagem prestada pelo Rotary Club Piracicaba-Paulista ao casal Ernst e Cidinha Mahle – em 22/11/2010.
(foto: Ernst Mahle e o Quarteto de Cordas Opus4)
abraços! 🙂