Hoje mamãe morreu. Ou teria sido ontem? Estrangeiro de mim mesmo, me distancio, todavia, de Camus e da morte de minha mãe. Mamãe morreu há uma semana, mas parece que foi ontem – que foi hoje. Talvez mamãe não tenha morrido. Talvez mamãe não morra nunca. Na loucura das vias, na loucura dos dias, das pandemias, das economias, da pressa da semana, da cobrança do existir duplamente entre a vida real e o trabalho, mamãe não pode nem dever ter morrido. Então – deslembrado, deslembrante, deslembroso – pego guimaraneamente o telefone para ligar para mamãe e contar a ela como as coisas estão difíceis para mim, como estou triste com o que me restou, como tudo se perdeu no de repente de meu caminho sem eu nem bem saber o porquê. Pego o telefone e – Camus que não sou – involuntariamente me dou conta, ao que parece, que mamãe morreu.
Hoje mamãe morreu? Ou teria sido ontem? Ou teria sido nunca? Fecho os olhos e vejo mamãe viva em mim. Aos sete anos, depois de sonhos infelizes, acordei chorando por mamãe. Sonhei que mamãe havia morrido. Mas mamãe estava viva. Pedi a Deus, naquela hora, que ele não a tirasse de mim. Ou, que se o fizesse, que se fosse o inevitável, que a tirasse de mim depois que eu fosse velho. Ai de mim do eu-criança que ainda estou. Hoje, sou velho. E Deus talvez tenha querido cumprir comigo sua promessa – e, talvez, tenha ousado agora tirar mamãe de mim. Mas mamãe vive. Vive mais do que nunca. Vive. Articula suas ordens, reza suas missas, briga comigo por conta do meu ateísmo seletivo e coordena a todos de sua cadeira, de sua poltrona potente, de sua poltrona latente, eterna e plena e sempre. Há uma semana, querem me fazer crer, mamãe morreu – e eu seguia seu caixão à frente de seu enterro. Mas eu, claro, não acredito.
Mamãe vive em mim mais do que entendo, mais do que consigo. Nunca pensei que fosse eu nela o tanto, o de ser – e que ela fosse tanto em mim do que eu sempre achei que sou. Se nasci quase dentro de uma escola, foi por causa de mamãe e de sua profissão. Se cresci numa escola rural, se dormi centena de vezes dentro de um quartinho onde se guardava a merenda, entre merendeiras e serventes de amor também maternal, foi porque eu – escola que sempre fui – nasci assim, pedagógico, cheio de letras, respirando o sempre-ar de um mundo sempreterno do que sou feito: o mundo do ensinar-aprender, o mundo do ensinar-entender a descobrir que a vida, que a existência, não é mais do que um verbo mais-que-perfeito. Por isso, em mim, dentro, no fundo, eu sei que mamãe não morreu. Por isso, em mim, mamãe, para sempre, o todo-sempre vive.
Não sei ser sem mamãe e sua escola, em mim, por dentro. Não sei ser, até o último instante, o que sou, o que aprendi no seu ensinar de mãe-professora. Até nossos últimos dias, em meio ao seu alheamento honesto que poético, conversávamos sobre nossas escolas, sobre o que é ou era ser professor num país dantesco e divino. Enquanto colhia no ar as flores para seu menino-abstrato, mesmo quando não desejava mais que um estar em campos de sonhos, mamãe me perguntava de meus alunos e alunas concretos, de minhas aulas, de minhas turmas, de meu amor pelo templo-escola do qual comungávamos juntos no sem-pensar das coisas. Nossa última conversa, terrena que material, há raros poucos dias, foi sobre minha alegria-tristeza escolar, foi sobre as novidades do viver-lecionar em campos distantes que difíceis. Naquele instante, quase passagem, quase partida, não sabia que eu, em mim, era o tanto que mamãe também o era: um tanto só, um tanto feito de escola-amor-e-vida.
Ao que parece, querem me fazer crer que Deus cumpriu comigo sua promessa. Ao que parece, Deus levou mamãe, há dias, para outras casas de ensino (se houverem, de fato, o que só por birra quase duvido). E eu, velho de agora ser, se assim for apenas agradeço sem tristeza ao Deus de minha mãe. Agradeço a ele, que tanto ela fez existir, o tanto que sou, o tanto que penso que sou do que aprendi da essência materna-que-escolar, da essência do amor em forma de mãe convertida em mãe-escola – nunca atingível, pois que honesta demais em sua arte de sempre-e-sempre, como poucas e muitas mães-professoras, no mundo, ser e a ensinar.
Alê Bragion.
Texto lindo, escrito com vida, coração e arte!
Viva, ela permanece em seu e nos nossos corações, a nos ensinar, incentivar em nossa caminhada…
Grande abraço saudoso…
Muito bom o texto, Alexandre. Cumpre-se a memória. Nossos sentimentos pela sua mãe. Que fique em nossa memória o legado da educadora. Abs
Que lindo, que tocante, que filial, meu querido Alexandre! Dona Dalva deve estar, mais uma vez, orgulhosa do filhão que deixou por aqui afetos tão bem aguçados.
Que beleza de texto, meu amigo! As mães não deveriam morrer! Talvez tenha sido um descuido ds divindade…