O meu primeiro beijo? O meu primeiro foi em Clarice. Mas foi como se não fosse, como se não tivesse sido. Todo dia eu via Clarice em tentação de cupido – passando sempre por mim entre águas, boiando olhares perdidos. E eu? Eu era um menino vivendo em felicidade clandestina ligeira – sem laços de família ou legião mesmo que estrangeira. Por isso, Clarice, se me via, via a um peixe feinho nadando entre peixes ornamentais num tanque de alguma feira. Mas um dia, me lembro bem, um dia ela observava de perto a nós – peixes estatutários de seu aquário de soberba. Seu rosto e lábios, polidos que brilhantes, surgiram de repente radiantes colados ao nosso vidro. Ah, Clarice… Não tive dúvidas nem hesitei: nadei, nadei, nadei e depois fechei os olhos e lhe dei um beijo – o meu primeiro beijo de meninice, nunca mais esquecido. Clarice… Como tanto te amei! Por que foi que quando abri os olhos você já tinha ido?
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Passaporte
Não tenho bilhetes para acompanhar sua viagem, nem espero você em qualquer porto de partida. Meu estar é sempre aqui em despedida vendo você ao longe abandonar a margem. Fico raiz em corpo de terra feito a arado. Semeio minhas tristezas e as colho com as mãos. Depois, me sopro pólen e me espalho orvalho estando em casa em plena amplidão. Por isso, talvez Lisboa também corra em meus dedos e Luanda seja meus nervos e minha pele. Moçambique, as pintas que me nascem em segredo sem que eu saiba delas e me rebele. Paris, assim, está em minhas costas. Nova Deli é, pois, o meu nariz. Meus pés, pela manhã, Amsterdã, meus olhos a Madri que eu sempre quis. Toronto é aqui, diante do espelho. Roma é onde bate o coração. Numa gare de cores nos cabelos, em Londres sou o chefe da estação. Não tenho, mesmo, os seus bilhetes, as suas passagens, os seus ingressos. Porém, ao fim da tarde, venho de regresso a casa com o vento e recolho-me na varanda coberta de folhas secas rodeada de lavandas. E antes que meu dia acabe, subo à gávea lunar onde, cansado, na sacada pastoreio os astros. E adormeço sozinho vendo seus passos, no caminho, pelo mundo a desvelar ciranda sem rastros: papel feito mapa atento e sério do universo de mistérios por onde você anda.
Alê Bragion é doutor em teoria e história literária pela Unicamp e editor do Diário do Engenho. Os textos acima excertos do livro não publicado “Casa Burguesa Sem Chave” – classificado dentre os 10 finalistas do Prêmio Claudio Willer de poesia do ano de 2023, da União Brasileira de Escritores (UBE).
Crônica também publicada em A Tribuna Piracicabana dessa sexta-feira(8/mar.).