Docinho – crônica de Alê Bragion.

Docinho – crônica de Alê Bragion.

banana docinho mordido

“Dizem que a vingança é doce. À abelha custa-lhe a vida.”  (Carme Sylvia).

“A justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem.” (Epicuro)

Me vinguei de você com uma bandeja de doces. Haveria outra forma? Foi-se o tempo em que a vingança era fria e cabia num prato. Hoje, não. Nada de misérias. A bandeja farta à minha frente foi o meu revide – sem dor, espera ou sofrimento. E assim lhe comi, logo de cara, sob a forma de um camafeu – e ainda cuspi-lhe a noz rejeitada pela minha língua. Em seguida, ataquei a sua vista míope e ordinária – e contra ela engoli raivosamente meia dúzia de vidrados olhos de sogra. Como mordi a cada um. Como espremi o cristal das ameixas entre os dentes como se o açúcar delas, na minha boca, fossem seus olhos a esguicharem sangue. Acho que nunca senti tanto prazer.

Seus cabelos pretos, de brigadeiro, os amassei lentamente entre os dedos. Depois lambi cada fio metamorfoseado no chocolate granulado incrustado debaixo das minhas unhas. Se você me visse. No meu gozo libidinoso, sorvi por volta de oito ou nove creminhos quando me lembrei da sua alma. Como ela é doce – doce e mole como os oito ou nove creminhos que comi. Enquanto isso, na bandeja os seus coraçõezinhos, de morango e leite ninho, palpitavam à minha espera. Obviamente não pude recusá-los. Ritmados e compassados, seus coraçõezinhos baterem pela última vez no fundo do meu estômago. A partir de agora não mais precisarei me preocupar com eles.

De cada cajuzinho, ainda mordi seus bicos entre dentes – com calma, com muita calma. Uma a uma, fiz explodirem ao meu bel-prazer meladas bombas de chocolate – e, nesse momento, gemi alto a imaginar estarem elas explodindo a sua imagem. Em meio a fumaça dos meus pensamentos, atordoado ainda pelo efeito das bombas, percebi que sua existência foi sumindo de minha frente, lentamente, ao vagar de espaços na bandeja de doces que, paulatinamente, foi se fazendo vazia – tão vazia como você. Se às vezes tive de engolir a seco sua indiferença, ao menos desta vez pude lhe engolir aos goles, com a ajuda de um bom copo de água mineral gelada.

Quando vi o seu fim, ante a bandeja terminada, dei também por terminada a minha vingança. Poderia ser melhor? Me entupi de sua doçura falsamente açucarada e me livrei de sua pegajosa e indigesta lembrança. Para usar de sinceridade – vingança cumprida – já ando espichando os olhos para outras iguarias, para outras tentações bem mais vistosas e saborosas. Talvez agora me aguarde o contraste suculento de porções salgadinhas – perninhas de rã, coxinhas de galinha… Melhores. Bem melhores e mais gostosas do que você.

————————–

Alexandre_-_JP_-_21dez08[1]

 

 

 

 

 

Alê Bragion é editor do Diário do Engenho.

 

One thought on “Docinho – crônica de Alê Bragion.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *