Com gritantes episódios de ineficiência e acossado por críticas da imprensa e do próprio meio político, inclusive governamental, o SNI (Serviço Nacional de Informações) sobreviveria ao fim do regime em 1985 e à promulgação da Constituição de 1988, sendo extinto apenas dois anos depois. Com o fim do SNI, suas funções foram concentradas em um mero departamento, em 1990, passando para subsecretaria em 1992. Apenas em dezembro de 1999 teria vez a criação da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), atualmente vinculada à Casa Civil, mas que já nasceria em meio a crises.
Parte do pessoal não reaproveitado durante essa transição ou que buscava novas oportunidades migrou para o setor “privado”, envolvendo-se em casos rumorosos como o dos “grampos do BNDES”, ocorrido durante a privatização da Telebrás em 1998 – um affair de influências e interesses escusos que levaria o próprio Presidente da República a ter ligações telefônicas interceptadas causaria a queda de algumas das mais altas autoridades monetárias do país e até de um ministro, mas que terminaria impune. Esse “mercado paralelo” formado por ex-agentes da comunidade de informações, além de manter bons contatos com as autoridades do setor de inteligência, quando não gozando de proteção, teria trabalho garantido, especialmente em anos eleitorais, em conhecidas práticas como a fabricação de dossiês expondo supostas irregularidades ou escândalos de candidatos.
Dentro desse cenário, a norma que efetivou a ABIN em 1999 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9883.htm) trouxe diretrizes que contrariavam expressamente décadas de práticas questionáveis (mas toleradas) da antiga comunidade de informações: “As atividades de inteligência serão desenvolvidas, no que se refere aos limites de sua extensão e ao uso de técnicas e meios sigilosos, com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado.”
O diploma legal ainda estabeleceu a ABIN como responsável pela execução da Política Nacional de Inteligência e ainda quais seriam as principais missões da agência, com destaque para o planejamento e execução de ações, inclusive sigilosas, relativas à obtenção e análise de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República; o planejamento e execução da proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade; e a avaliação de ameaças, internas e externas, à ordem constitucional, dentre outras. A lei também determinou seu controle e fiscalização internos e externos (esse, a cargo do Poder Legislativo) e ainda a transferência, para a ABIN, do acervo patrimonial então existente utilizado pela “unidade técnica encarregada das ações de inteligência”.
Existem indícios para acreditar que a ABIN acabou recebendo bem mais que a estrutura material dos órgãos que a antecederam. Um dos grandes – e mais nefastos – legados do SNI à inteligência brasileira não foi material, mas sim intangível, representado na persistência de uma cultura que possui dois grandes e perigosos vícios: o combate a inimigos ou rivais políticos internos, geralmente opositores do governo de plantão – ou de grupos econômicos a ele ligado -, e o desprezo pontual à legalidade.
Manifestações desse desvirtuamento institucional puderam ser constatadas, desde a criação da ABIN, em uma sucessão de episódios com robustas indicações de desvio de finalidade, muitos repetindo velhos enredos da época do SNI, como, dentre outras, denúncias relacionadas a: blindagem da cúpula contra investigação criminal relacionada aos grampos do BNDES (1999), utilização de agente para tentar “seduzir” alvo de operação para obtenção de informações (2000), represamento de apuração de irregularidades praticadas por aliados (2005), instalação de escutas clandestinas contra ministros do STF (2008), monitoramento de lideranças indígenas e de ONG´s com posições contrárias à realização de grandes empreendimentos na Amazônia (entre 2011 e 2016), uso de software espião no monitoramento de jornalistas e autoridades – com armazenagem de dados fora do país (entre 2018 e 2022) –, existência de sala “secreta” dentro de ministério (descoberta em 2023).
A acomodação da cúpula na apuração e punição de supostos desvios de conduta, facilidades para a aquisição de tecnologia de espionagem, subserviência a interesses políticos, inexistência de autorizações judiciais e a ausência de controles efetivos e de uma fiscalização mais robusta por parte do Legislativo contribuíram para um quadro que aparenta ser de descontrole, em especial com as indicações da existência, nos últimos anos, daquilo que ficou conhecida como ABIN “paralela”.
Diante dessa realidade, há de se concordar com o doutor em ciência política e professor Jorge Zaverucha que, já em 2007, destacava o chamado “hibridismo institucional” da ABIN, por apresentar características tanto de “mudança democrática como de conservação autoritária”, algo que se mantém ante o que parece ser uma vocação atávica do órgão: permitir o emprego de seus recursos humanos e materiais para, ao arrepio da lei, coletar informações e instrumentalizar ações contra desafetos ou rivais políticos internos. Como ele mesmo sintetizou: com o “passar do tempo, a ABIN, em vez de diminuir, aumenta seu parentesco com o SNI”.
Aos que queiram conhecer melhor como os órgãos de inteligência atuaram também em Piracicaba, é possível acessar o livro “Piracicaba, 1964”, nos capítulos “Pelo buraco da fechadura, na rua ou na missa: todos observados”, entre as páginas 290 e 315. http://editora.metodista.br/publicacoes/piracicaba-1964
Orlando Guimaro Junior é advogado com especialização em Direito Contratual (PUC/SP) e MBA em Agronegócios (PECEGE/ESALQ-USP) e membro da Comissão Especial de Estudos de Compliance da OAB/SP. É coautor do livro “Piracicaba, 1964: o golpe militar no interior”.