Lembro-me ainda do dia em que o super- homem enlouqueceu,
em sua sala art deco, cheirando a mofo e conhaque,
com aquela luz amarelada sobre o sofá lilás,
e o velho uniforme atirado sobre a bergere no canto,
um pouco puído, bastante amarrotado, com os punhos sujos de borrifos de sangue
e areia por todo lado, suas sapatilhas em forma de bota,
e um retrato dos bons tempos, ao lado do Chevrolet dourado,
ícone das ruas limpas da cidade que salvara
dos bandidos, do crime, da barbárie,
e ele se ria – KKK KKK KKK – ria alto, quem sabe alguém
o ouvisse, e batesse à porta,
que ele abriria, voando baixo pelo apartamento do segundo andar,
ele, sua almofada velha (ah, essas hemorroidas!) e seus gatos,
a barba por fazer, e uma última cápsula de kriptonita,
que o libertaria, afinal!,
na mão magra e trêmula que levava à boca,
sorvendo o veneno lento que o tornaria humano,
ele, Jor-el de nascimento, Clark Kent por adoção,
finalmente liberto da esquizofrenia,
esse ser e não ser simultâneo que o assolara toda a vida, e agora,
olhando-se pela última vez no espelho, a barba rala,
o rosto inchado, vermelho, o cabelo acaju, pintado,
os olhos injetados, e toda sua figura a evanescer,
desfigurar-se, sumir-se num abismo sem identidade,
até que só lhe restasse o queixo como a proa a submergir num naufrágio,
e o corpo pesado tombou ao chão, caindo-lhe do bolso
as poucas moedas que havia juntado,
e um pensamento atravessou-lhe a mente, como um raio,
de repente, “quem cuidará dos gatos?”
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.