A verdade a mais elevada já não residia mais no que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação a sua referência.
Michel Foucault, A Ordem do Discurso.
Em tempos de crise todas as ações passam a ser legitimadas por um discurso hegemônico, implacável. A crise passa a ser revestida de uma autoridade quase mágica, inconteste, a permitir a supressão de direitos, mesmo alguns conquistados ao longo de anos de lutas, revindicações e árduas articulações políticas. Tendo como meta uma pseudo superação da crise, tudo mais é relativizado, posto em suspenso. Diante da crise, não há mais cidadãos, nem política, nem direitos, apenas o imperativo de uma ordem econômica que deve ser restaurada, mantida a qualquer custo.
Para os mais pobres o custo da manutenção da ordem vigente configura-se na perpetuação de um estado de pobreza, meticulosamente construído no decurso de uma história de dominação e ideologicamente justificado por abordagens tecnicistas e burocráticas, carregadas de hipocrisia e vilania social. No discurso de crise, a pobreza é ainda mais vilipendiada. Deflagra-se uma clara ameaça: ou drásticas medidas de contenção à crise são tomadas ou as desigualdades serão aprofundadas e acentuadas. Como se essa já não fosse a perversa realidade histórica para milhares de cidadãos, que aprenderam a subsistir no fio da navalha.
O discurso de crise tem a força de inflamar os ânimos, convocando para uma marcha sem direção clara, coerente. Serrar fileiras, fechar os punhos e sair às ruas, conclamando pela restauração de uma suposta ordem político-econômica, que não deixou de se manifestar historicamente, para os alijados da terra, como verdadeiro caos social, como autêntico vale de lágrimas.
É preciso salientar que reina, prevalece uma estranha e torpe lógica, a nortear os discursos mais dissimulados e evasivos. Em períodos de bonança, oportunamente, privatiza-se todos os ganhos e, por meio do discurso de crise, socializa-se apenas as perdas.Grandes conglomerados empresariais, verdadeiros impérios econômicos foram sendo paulatinamente levantados ao arrepio do agravamento da exploração do outro, da miséria e da exclusão. A fartura de bens produzidos, a riqueza humana construída, as benesses do desenvolvimento nunca foram, genuinamente, partilhadas. Setores que historicamente acumularam e concentraram riquezas – inclusive de forma espúria – arregimentam a massa, assumindo inflamados discursos para forçar a socialização da crise. É fato que algumas migalhas foram parcamente distribuídas, mas apenas como instrumento de contenção social. A crise, as perdas, os prejuízos – queda nas vendas, baixa produção etc – devem ser socializados, repassados a toda sociedade, em forma de desconstrução de direitos. Na ideologia da crise, desvela-se o ideário da ambição sem limites, a impor a lógica do ganhar sempre, a qualquer custo, em detrimento da dignidade do outro.
Em uma interessante e provocativa analogia, a representar a estrutura da sociedade no contemporâneo, um professor da Unicamp – José Carlos Magossi –, utiliza-se de uma representação sugestiva, enfatizando que a ordem vigente revela-se sedimentada como um castelo de cartas, em eminente processo de desmoronamento. É a denúncia de uma lógica social insustentável, incapaz de edificar perspectivas sociais pautadas na ética e no direito.
Direitos refletem, representam trajetórias de lutas e conquistas. Não são dádivas, vontades espontâneas ou mesmo liberalidades bondosamente concedidas por algum poder benevolente. Por trás de cada direito, há ideais, organização política, militância combativa, sangue derramado. A supressão de direitos escancara, no limite,o antagonismo social, a luta de classes, a fragilidade e limites de uma sociedade estruturada como um castelo de cartas.
A dramática experiência de crise pode suscitar a propositura e articulação de novas bases sociais, alicerçadas em uma genuína e alternativa concepção de política e de economia. A política a dinamizar, de maneira ética, a cidade como o espaço de todos e a economia a distribuir, com equidade, os bens produzidos. Está na pauta do dia a construção cuidadosa e paulatina de novos valores: reavaliar velhas práticas de consumo, construir a perspectiva do trabalho a partir do acesso de muitos à riqueza devidamente produzida pela engenhosa e criativa mão humana, projetar-se para a alegria de viver uma economia voltada para o humano reconhecido como prioridade, centro e essência dos rumos de uma sábia política.
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Adelino Francisco de Oliveira é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
Ótima reflexão sobre a dinâmica do funcionamento da crise, o interessante no texto é que nos faz perceber que a crise no modo midiático que vem sem colocada vai além dos recursos físicos e se sustenta num factóide que interessa a muito poucos. A terra, o pão e o sangue ( o mundo, a mão que faz, e o povo) superam fisicamente crises a muito tempo e ainda não percebemos que o que ocorre é uma ideia lunática que o mundo está acabando e por conta disso os direitos humanos serão substituidos pelo direito da terra (selva). Ótimo texto.
Prezado Francis,
Estimo que esteja bem! É bom vê-lo circulando pelo Diário. Sua interlocução avança para uma compreensão mais fina e política da crise. Abraços,