Trauma. Sonho. Delírio. Memória. O que em mim sonha está pensando. O que em mim existe está sonhando. Em épocas de Napoleões eleitos, os não-defeitos viram defeitos – e, à beira do precipício, viver com arte se tornou um mistério à parte. Pois a patrulha da esquina e seus guardas de plantão sobem a rua na contramão do sonho, do ócio ativo-criativo e da fé. Então, sonhar, sonhar-te, agora é coisa de maluco, de malandro, de doidão. Ai! – e como é boa essa alucinação! Como é boa essa malucagem exaltada afrontando a carceragem da podridão erigida pelos que se acham donos da grana e da vida. Abaixo vossas moralidades, ó senhores patrões donos de suas únicas verdades! Abaixo vossas vergonhas e maldades – vós, que sois tão pobres, que só tens dinheiro e poder (e que, da arte, nunca terão um grama sequer de generosidade).
E o que é o homem sem a loucura? – já nos perguntou o poeta – senão mais do que a besta sandia: cadáver adiado que procria. O que é, por outra via, a lucidez humana? Em que cabana do inconsciente habita a nossa alma demente? Em qual rincão da mente dorme a normalidade quando, de verdade, perdemos o de si frente aos que se mantêm hipocritamente fiéis a seus jogos sociais de adequação? Há salvação fora da arte para a alma que não mora mais dentro do corpo nem em outra parte? À arte! À arte! Caminhemos! Que a arte é o campo dos exaltados, dos não contidos, dos abnegados semeadores de nuvens sob o sol e a chuva. À arte! À arte! Caminhemos. Que o fim da tarde, em arrebol, brilha e arde diferente na tela mental de quem, da vida, cria mundos por diversão. Criemos!
Criatura-criadora, Maura Lopes Cançado também criou mundos em seus guardados – criou histórias de se perder, criou amores a viver amados. De infância difícil, de saúde frágil, vítima de abusos sexuais e outros assassinatos da placidez de sua alma de menina, Maura perdeu a calma – mas não perdeu a letra e a sina. Siso sem tino, tornou-se aviadora – apesar da fobia que tinha. Depois, tornou-se mãe e mulher (aos 15 anos de idade!). Por fim, cansada de tanto tornar-se, Maura Cançado descansou o de si. Abrindo-se em profusão difusa e confusa, alucinou-se em história, em invenção, em literatura. E pronto: num zás, já não era mais o que jamais foi. Trauma em sonho, (pois Träum é sonho em alemão) Maura-migração migrou-se em eterno para seus textos-diários-de-sombras escritos com a pena da aflição.
Escritora de sua própria loucura, administradora de sua alucinação, Maura misturou temporadas entre os escritórios da redação do Jornal do Brasil e estadias horrendas nos campos-prisão de sanatórios variados no Rio. Na redação do JB, loucos como Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony e outros gênios (a)normais eram seus iguais companheiros – mesa a mesa. No hospício, de plantão, outros loucos (só que, esses, desavisados e desconhecidos) tinham em Maura o exemplo da normalidade perdida de sua condição.
Em “Hospício é Deus”, seu livro-diário de tempos duros, Maura alucina realidades – transcende esperanças, inventa desejos e vontades. Entre 1959 a 1960, um hospício divino e diabólico se inscreve na vida de Maura. Incerta como uma reta apagada entre dois pontos, sua narrativa objetiva planos invisíveis, concretiza absurdos risíveis, descreve dores e crueldades impensáveis: o mundo-submundo dos hospícios, a vileza dos eletrochoques torturantes, o sadismo de médicos e enfermeiras cuja sanidade protocolar e diplomada é a única coisa (e mais nada) que diferencia, pouco a pouco, os loucos internos dos loucos externos de jaleco branco e voz de comando autoproclamada. Em sua coletânea de contos, que merece muito ser lida, Maura desvê a vida – sofrida – vivida por ela em seu enlouquecer: o “Sofredor do Ver” é coletânea a se ler desnudo de sentimentos, num banho de sol de palavras a penetrar a nossa carne de internos e detentos jungidos ao poder perturbador dos abismos.
Entre abismos diários e diários sísmicos – por fim – ilumina-se também agora a peça “Diários do Abismo” – em pura maravilha, com a atriz Maria Padilha e direção de Sérgio Módena. Baseada nos livros de Maura Lopes Cançado, o espetáculo solo de Maria Padilha é um achado de pura emoção, beleza e humor – permeado, como não poderia deixar de ser, pela loucura e pelo amor. Trazendo a público a vida e a obra dessa escritora marcada por eternas febres terçãs, a peça comove, incomoda e provoca à sanidade de quem – certo de suas certezas – quer ser por normal sempre tratado.
Sim. Em épocas de Napoleões poderosos e abobados, ler os livros de Maura Cançado e assistir à peça de Maria Padilha é um dos mais gostosos cuidados que precisamos ter para jamais –jamais – recobrarmos a sanidade. Jamais.
Em tempo: a peça “Diários do Abismo” segue em cartaz no Sesc 24 de Maio, São Paulo, até 7 de abril. Quintas, sextas e sábados às 21h. Domingo às 18h.
Está crônica segue publicada em versão impressa também no jornal “A Tribuna de Piracicaba.”
Alê Bragion é doutor em literatura pela Unicamp e editor do site Diário do Engenho.
Parabéns, Alexandre, pela crônica. Gostei muito. Faz tempo que não lia sobre a razão e a loucura ardente, explícita e cortante que habita em cada um de nós.abs.