Dia de visita

narizAs listras, as bolinhas e os lacinhos coloridos dos figurinos quebraram a frieza dos corredores e suas paredes em tons pastéis. O único pastel que sobrevivera ali media 1,86m, pesava 87Kg e há pouco tempo havia recebido o título de doutor. Isso mesmo, doutor Pastel. Não que houvesse alguma semelhança com o alimento, mas porque achara graça quando o chamaram dessa maneira.

E ele não estava sozinho. Suas visitas eram semanais e acompanhadas por mais dois doutores: Caramujo e Sapequinha. Apesar de cada paciente estar ali por motivos variados, os três eram motivados pelas mesmas razões: alegria, solidariedade e humanização.

O rosto pálido não significava estar enfermo. O nariz vermelho tampouco resfriado. E as bochechas rosadas não eram sinais de febre. Tudo ali tinha um novo sentido.

Os primeiros pacientes não mediam mais que 35 cm, porém já tinham tamanho suficiente para ensinar que ser pequeno também é ser forte e que, com amor, a vida brota como uma rosa em meio a um deserto.

A próxima visita quebrou o silêncio no corredor. Tomando em mãos seus instrumentos de trabalho, os doutores começaram a sinfonia. Doutor Pastel, além de engenheiro, era um excelente violonista. Doutor Caramujo tinha gingado no escritório de contabilidade e no pandeiro. Doutora Sapequinha arrasava nos penteados de cabelo e era a voz que faltava para o trio.

– Eu quero ouvir música caipira, de raiz! Toca aí! – gritou uma voz vinda do terceiro quarto.

Doutor Pastel encaminhou-se para lá e começou a solar uma canção de infância, ensinada pelo avô.

A música agradou ao que pediu, mas não àquele que foi obrigado a ouvi-la, pois estava na cama ao lado. A testa franzida, os lábios enrijecidos e o olhar de reprovação já diziam tudo.

– E o senhor, o que gostaria de ouvir? – perguntou doutor Caramujo.

– O silêncio! – foi a única frase que o senhor K. disse naquela manhã.

Entretanto, os doutores não respeitaram o pedido e iniciaram uma nova canção. E esta, operou como um desfibrilador no coração do senhor K. que, ao se despedir, enviou um beijo para doutora Sapequinha. A vida é assim! Às vezes, o diagnóstico é conhecido, porém é preciso mudar o tratamento para a melhora acontecer.

Cada quarto daquele corredor foi visitado com muito amor, música e diversão. Ao prepararem-se para a última visita daquele dia, depararam com uma porta fechada. Contudo, alguém do outro lado percebeu como que,intuitamente, a presença dos doutores e adiantou-se:

– Entrem, entrem! Estava ansiosa para conhecê-los!

Ao entrarem quarto adentro, a alegria no sorriso da senhora M. foi contagiante. Seus olhos irradiavam doçura, carinho e cumplicidade. Em dois anos de “residência”, nunca haviam visto nada parecido.

Não importava o estilo, ela só queria uma canção. E ao final, aplaudiu como se estivesse em um concerto.

– Muito bom! Muito bom! – limitou-se a dizer.

– Diagnosticamos que a senhora está em perfeito funcionamento. Nenhum parafuso a menos, nenhuma mola a mais. Poderá ir para casa muito em breve. – concluiu doutor Caramujo.

– Eu sei que posso, mas prefiro ficar aqui. – argumentou.

Por que alguém escolheria ficar em um hospital ao invés de ir para casa? Percebendo a interrogação no rosto de cada doutor, a senhora justificou:

– Há 9 anos moro em uma casa de repouso. Fiz muitas amizades por lá e os funcionários são ótimos. Mas, nesses últimos 9 anos, só recebi a visita de meus dois filhos uma vez ao ano, ou seja, nove vezes. Aqui, em 6 dias de internação, eles vieram todos os dias, até mais de uma vez por dia. Aqui estou no lucro!

E continuou:

– Outro dia, estava com muita dor no calcanhar. Acho que exagerei nos exercícios – brincou – aquela dor conseguiu tirar meu bom humor, incomodou-me demais. Assim que cheguei aqui, meu companheiro de quarto havia quebrado a perna em dois lugares, havia feito três cirurgias e não sabia quando voltaria a andar. Aqui vejo que, realmente, estou no lucro! – riu.

Doutora Sapequinha sentou-se na escada de dois degraus, próxima à cama, e doutor Pastel acomodou-se na poltrona de acompanhante. Doutor Caramujo permaneceu em pé, ouvindo, atentamente.

A senhora prosseguiu:

– Aqui, meu sorriso cura mal estar – interrompeu a frase com uma gargalhada.

Sem pensar duas vezes nem consultar os colegas de trabalho, doutora Sapequinha levantou-se e retirou do bolso um nariz vermelho.

– Se a senhora se interessar, pode receber alta e entrar para a nossa equipe. Precisamos de uma especialista em sorrisos e de uma segunda voz para o trio ser ampliado para quarteto. Topa?

A senhora M. colocou o nariz, apressadamente, e apenas preocupou-se em perguntar:

– Quando começo?

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Figura2

 

 

 

 

 

Fernanda Rosolem é jornalista, pedagoga e musicista.

 

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