Deus está morto!

Deus está morto!

Calma, não me refiro ao Eterno e Poderoso que está acima de todas as compreensões que possamos ter, tampouco a Nietzsche quando fez a mesma afirmação. Digo que Deus está morto nas pessoas, na cultura, nos costumes, na ética, no tempo comum daquilo tudo que chamamos de vida. Assim concluo porque entendo que a expressão divina acontece através das pessoas, da confissão de quem O professa em palavras, atitudes, impressões.

Deus age por mãos humanas, no respeito, na solidariedade, nas manifestações de vida que se possa ter, principalmente, essencialmente, em relação ao próximo. Certa vez, ouvi uma alegoria muito profunda sobre a ação de Deus no mundo, contada por um grande amigo, Rev. Lauri Becker – hoje Pastor Sinodal da Igreja de Confissão Luterana. Dizia ele que quando nosso senhor, ressuscitado, estava subindo aos céus, já muito além das nuvens, foi recebido por uma legião de anjos que perguntou se gostaria que viessem a Terra para continuar o que havia começado – ao que respondeu: “Não. Agora está com eles… eles que levem adiante o que foi anunciado e vivido.” Creio, assim, que se os seguidores do Cristo não colocarem em prática o que foi anunciado por Ele, o evangelho, a boa nova, morre, com isso, Deus morre no coração, no sentido e na vida das pessoas.

Sou convencido que Deus está morto quando vejo quem se considera cristão, que alardeia isto aos quatro cantos, dizer um tremendo “E daí?” para milhares de famílias enlutadas, empobrecidas pelo distanciamento definitivo de seus entes queridos. Não é plausível a alguém que se considere minimamente centrado aventar a possibilidade de reunir amigos para um churrasco enquanto milhares de famílias choram seus mortos. Isso, além de indelicadeza, falta de compostura e educação, é desumano. Uma pessoa dessas não merece ser chamada de religiosa, de qualquer religião. E para o cristianismo, a vida é questão fundamental. Ser cristão é ser promotor de vida, de vida plena, de tudo que se possa referir a ela. Se não há vida, não há Deus, se não há preocupação, empenho, dedicação. Vida significa: comida, roupa, casa descente, água, energia elétrica, condições de trabalho, de ir e vir, acesso à educação, e, acima de tudo: saúde!

Como é possível haver uma “justiça” que dê voz de despejo a dezenas de famílias em plena pandemia, justamente quando o período de frio se assevera, ainda mais agravado pela necessidade premente de isolamento social? É triste, lamentável, assistir “cristãos” dando de ombro para a necessidade alheia! Naquela linha do “cada um pra si, Deus para todos”. Esse tipo de atitude não é próprio a alguém que deseja ser chamado de cristão. Não basta fazer parte de uma igreja, ser arrolado num rol de membros, participar da eucaristia, dizimar, cumprir os votos, ser dedicado, não faltar aos cultos, ser ativo se em sua prática – emoção e sensibilidade – o não houver dor pela dor do outro. Como é possível um cristianismo que diz “e daí?” para a falta de vida, seja ela de qualquer tipo! Esse cristianismo, por ironia, mata Deus todos os dias.

Deus também morre toda vez que o desrespeito se coloca entre a vida de um e de outro, quando liberdade, reflexão, questionamento, razão sofrem algum tipo de ameaça. Não há maior opressão do que tentar impedir uma pessoa de raciocinar, usar sua capacidade de perceber, sentir, cogitar, mas, especialmente, de opinar. Quem não opina não participa, não é contado, considerado. Quem não opina não existe. É justamente a possibilidade de dizer, expressar ideias que constrói, é o debate que desperta o raciocínio, a ciência e a evolução.

Deus está nisso, nesse dinamismo participativo, comunitário, de respeito e partilha. Mas quando alguém diz: “cale a boca!”, Deus não existe mais. Morreu… Porque acaba a possibilidade de Deus diante do tolhimento, restrição, impedimento. O “cale a boca” é o assassinato de todos os tipos de igualdade, de fraternidade e religiosidade. Agora, sorrir, cantar, tripudiar ao se referir a um tempo político de restrições, torturas, opressões, repressão ao livre-arbítrio é banalizar e afrontar a existência de um Deus que é amor e “para a liberdade… nos libertou”. Isso é crucificar o Cristo novamente!

Também não concebo a existência de Deus quando o ego toma conta da própria vida e se impõe sobre a dos outros. Só diz “eu que mando”, “só eu que decido”, “eu sou a última palavra”, quem já matou Deus dentro de si. Porque aquele que ainda tem o Deus vivo, partilha, conversa, discute, pondera, usa de domínio próprio, de mansidão. Quem tem o Deus vivo sabe que é d’Ele a última palavra. Então, por temor e tremor, é humilde, pacífico, controlado, não arrogante, mede palavras, atitudes, age e reage sabedor de que há um Deus sobre tudo e todos, fiel, capaz, digno – e respeitar a vida, o próximo, é respeitar Sua própria divindade.

O grande Abraham Lincoln pode ser realmente assim considerado por sua clara e expressa submissão e reconhecimento a um Deus que estava sobre tudo e todos. Certa vez, afirmou: “Eu tenho sido impulsionado muitas vezes de joelhos pela convicção esmagadora que eu não tinha absolutamente nenhum outro lugar para ir”. Essa é a atitude de um grande presidente que não somente falava, mas, sobretudo, vivia a realidade de um “Deus acima de todos”! Quem tem um Deus acima de todos vive e age com reverência e não com arrogância. Quem tem um Deus acima de todos, mas não acima de si mesmo, cultua seu próprio ego mais que a qualquer deus. Pode parecer um paradoxo, mas há líderes que nem cristãos são, no entanto agem tão pacificamente que superam em muito em seus resultados outros que se declaram ser.

Mas o pior dessa minha conclusão não é o fato de constatar a presunção e altivez de uns. Fico impressionado por haver quem aplauda, venere, mitifique a despeito de qualquer crítica, coerência ou senso do ridículo. Mais ainda me espanta o culto prestado por quem se diga cristão, pois, além de afrontar pecaminosamente o primeiro mandamento, mata impiedosamente a Deus, destrói a possibilidade de uma crença verdadeira, acaba com o cristianismo bíblico que apregoa a existência de um só Deus. Diante disso, continuo achando que Deus está morto, não em mim, mas na sociedade em que vivo, no coração de muitas pessoas com quem convivo, nas palavras que ouço pela TV, nas postagens que leio em redes sociais e, vergonhosamente, nas mais altas esferas da religião, da política, da justiça e do governo do meu país.

Rev. Nilson da Silva Júnior é pastor e professor.

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