Quando meus olhos se cansam, descanso os meus olhos em colchões de sonhos feitos de nuvens e amores vãos. Para que tantos amares? Por que de tantos amores? – perguntam os meus olhos e o meu coração. E eu, que nem de muito longe sou Drummond, a eles respondo é nada. E nada respondo assim por que realmente não sei – pois só sei que me entrego, desde que me sinto um pouco gente, a cada mirada desavisada que me fere de ego e faca a alma desalmada e desarmada. E sofro. Arre! Como sofro! Que sofrer não se escolhe nem se prefere quando a noite vem e se tem na pele qualquer espécie de solitária solidão.
Passei parte da vida tentando entender minha tristeza e o porquê de tanto sofrer talvez sem motivo. Depois, acabei me habituando a ser triste e às suas preferências: o vazio das classes depois da saída dos alunos, os pulsos quase cortados às seis das tardes de ave-marias no rádio chiando velharias de minha avó, a certeza do estar sozinho por escolha na coxia de espetáculos alegres que cheios de risos alheios, as madrugadas de janela aberta e cigarros velando o noturno da rua do centro da cidade repleta da falta de gente dos dias e prenhe-eterna de silenciosos papéis sujos forrando a calçada, e este inegável gosto pela canção do fim – pela melodia do nada absoluto sobre a mesa, incerta certeza a me por a amar poemas feitos de dor e spleen.
Depois, percebi também que meus dias só são dias quando há chuva. Sempre tive gosto por cidades molhadas. Sem arroubos de temporais, sem a violência das tempestades, venero dentro de mim o som dos passos no escorregadio dos paralelepípedos sob a chuva fina e boa antecipando manhãs nubladas cheias de reflexão e de… tristeza. Não que eu goste de sofrer – pois ninguém (eu acho) escolhe ser assim. Mas fui entendendo que sofrer, em mim, era tendência – talvez a manifestação de alguma espécie de DNA espiritual que tenha se passado por costume entre gerações e sido repassado a mim no berço, nas canções de ninar que até hoje me fazem chorar copiosamente (há coisa mais triste que canção de ninar?).
Depressão não é falta de Deus – graça a Deus. Há quem o diga – e já ouvi de gente que se acha intelectual e séria – que quem sofre de depressão é quem não tem ou não acredita em religião. Miséria! Que o Deus dessa gente– ou as deusas – os tenha no coração, porque precisam de entendimento, sentimento e razão. Ora. Depressão, se de fato e essência, é doença – e é bom que isso se diga e se rediga sempre. Há processos químicos em jogos de ação e desação dentro de quem, como eu(ou como nós?)sofre com os nós que nem sabemos se somos nós ou os outros que os dão.
E aí, então, nesse de repente, descobrimos – ou descobre-se – que a depressão não é apenas tristeza (afinal, ser triste, ora ou outra, também não é privilégio ou reivindicação). Depressão é estar além da nostalgia, além da chuva adorada, da tristeza de ventos eventuais ou de marés ruins em tempestades inesperadas. Depressão é estar no fundo do mundo, emparedado em falta de perspectivas e solução para o que se tem ou não se tem nas mãos. Por isso, a depressão exige ajuda: alta ajuda profissional, que não tem a ver com igreja, fé ou oração.
Ainda amo a tristeza das manhãs cinzas que líricas do meu café sem açúcar. Ainda sei das minhas mazelas passando estreitas pelas vielas da incompreensão. Hoje, sinto a beleza convertida da tristeza crônica, desarmônica, da solidão camoniana do estar só entre as gentes. Porém, depois de tanto caminho já trilhado, agora a depressão passa longe do caminho ao lado. Transubstanciada em poesia, em arte-dia, mantenho-a distante – acorrentada, mas à vista dos olhos. Mas quando escuto certos sinais – como numa anunciação de Alceu às avessas – acendo um alarme todo feito de luzes amarelas e cuidados.
E sofro um pouco, é claro. Porque sofrer a poesia é, às vezes (perdoem-me), tão bom.
Alê Bragion é editor do Diário do Engenho.
(Crônica publicada também em A Tribuna Piracicabana.)
Que belo Alê, sinto-me contemplado na contemplação de suas letras e frases. Só ainda não sei o que fazer com essa tristeza.
Abraço