Democracia de Papel

Democracia de Papel

A noção de democracia pressupõe, de maneira concomitante, tanto a perspectiva da justiça social quanto a efetiva soberania popular. A superação das graves desigualdades sociais, no plano econômico e social, alinhada à plena participação dos cidadãos nos processos políticos e decisórios da sociedade é o que consolida uma democracia de alta intensidade. Sem o princípio fundamental do estado de direito, a democracia não passa de um mero conceito abstrato, vazio de qualquer conteúdo real, uma democracia de papel.

É preciso, no entanto, uma compreensão complexa, contemporânea de estado de direito, que, ao ultrapassar a concepção de igualdade jurídica, avança para a garantia universal de todos os direitos. A consolidação do estado democrático de direito representa também a afirmação dos direitos humanos. Não há democracia de fato em uma sociedade que, para perpetuar uma situação histórica de abissal desigualdade social, manipula o próprio processo eleitoral – via deturpação do direito –, demonstrando total desprezo à soberania dos cidadãos.

A defesa da democracia – e por extensão lógica dos direitos humanos – deve ser ponto consensual na luta política. Sem o horizonte democrático, balizado no princípio do estado de direito, a sociedade não tem como avançar. Por isso que se coloca, de maneira coerente, a antinomia: democracia ou barbárie. Se a sociedade se curvar à corrupção explícita do direito – na efetiva usurpação das garantias democráticas –, estará fadada a um destino opaco e sombrio, divorciado do ideal de justiça.

É fundamental refletir e discernir como os conceitos de democracia, estado de direito, justiça, soberania popular, cidadania e direitos humanos se articulam em realidades locais, na dinâmica da gestão em esfera municipal. A luta pela defesa do estado democrático de direito, que contempla um escopo nacional, global, diríamos até civilizatório, alcança capilaridade nos embates locais, no contexto das demandas que perpassam o cotidiano da vida. Sem perder de vista disputas mais amplas, com conteúdos que envolvem a nação em seu conjunto, é preciso especial atenção às mazelas que afetam os indivíduos na singularidade de cada cidade.

A questão consiste em perceber a estreita relação que existe entre as decisões tomadas no âmbito da macroeconomia e as pautas mais regionais e locais. Como, por exemplo, a proposta de reforma da previdência, o projeto anticrime, a liberação da posse e do porte de armas, o contingenciamento de recursos para educação, a política de privatizações, a utilização do judiciário como arma de manipulação política etc., afetam e alteram a dinâmica da vida em determinada localidade urbana? As decisões políticas em esfera nacional não deixam de produzir efeitos reais. É fundamental que tais consequências sejam debatidas, de maneira responsável, no contexto mais local.

O gestor da municipalidade não pode ficar alheio ao debate dos graves temas nacionais. A defesa contundente dos princípios que sustentam o estado democrático de direito deve acontecer, sobretudo, no espaço das cidades, onde os dramas sociais se tornam mais objetivos e concretos. No cotidiano de cada cidade, as misérias sociais, decorrentes da ausência de políticas públicas, tornam-se visíveis, assumindo rostos não anônimos. O gestor público, como agente político, tem a missão de zelar pelos cidadãos do município, sempre na direção de defender e construir o bem coletivo na municipalidade, alçando a democracia para além de uma representação figurativa de papel.


 

 

Adelino Francisco de Oliveira é filósofo e professor no Instituto Federal campus Piracicaba. 

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