Em tempos de crise, por mais triste que isso possa parecer, as pessoas só se preocupam consigo mesmas. Quanto mais se agrava a crise, mais exclusivismo. Isto faz lembrar de um ditado popular que diz: farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Dizem que esta frase surgiu durante o desbravamento do Brasil, com os bandeirantes. Quando o estoque de comida estava acabando, o prato principal era peixe com pirão. Então, o chefe da expedição usava a força do cargo para servir-se antes dos outros, garantindo que seu pirão tivesse farinha suficiente, mesmo que os demais ficassem com pouca ou nenhuma farinha.
É com esta realidade que infelizmente enfrentamos as crises. O comerciante analisa os acontecimentos a partir dos rendimentos que obtém. O médico, pelos impactos que tem sobre a saúde. O prefeito, ante os resultados políticos que isso pode ter em sua gestão. O banqueiro, sob os ganhos ou perdas prováveis. Ou seja, cada um analisa a situação segundo seus interesses, riscos, oportunidades, na ótica de sua posição social, financeira, política, empresarial, de saúde, enfim.
Assim, a crise é particular, própria, com significações e resultados distintos para cada pessoa, ironicamente “ruim” para uns, “boa” para outros. Enquanto há quem morra, há quem lucre, enquanto alguns perdem seus amores, outros ganham dinheiro. Existem muitas crises numa única circunstância, muitos sentidos e sentimentos num só evento. Por isso, as pessoas pensam em si, em seu teto, em sua comida, em seus queridos a despeito do que ocorre no mundo ao redor.
Há, contudo, um detalhe, uma lacuna, uma posição que para mim é muito cara, a visão que se tem, ou se deve ter, a partir da ética, da fé que se professa. Saliento aqui que isso é de se esperar para pessoas que tem uma confissão, um credo, ou seja, que pertencem a uma conduta pautada em princípios de uma filosofia religiosa. Talvez até este seja o motivo de não se ter, na prática, ética religiosa. Falo a partir do cristianismo, de onde me situo.
Minha preocupação ocorre porque a conduta cristã-bíblica se refere a amor, respeito, dignidade, fraternidade, partilha, ajuda, reporta-se não somente ao Poderoso, mas, igualmente, às pessoas. Porque ser cristão é ter uma atenção que vai além do umbigo, além das paredes e muros que cercam a própria vida. O cristão é aquele que se dói com a injustiça, a fome, a dor, o frio, do outro, do desconhecido, do que não pensa como ele, do que não se veste como ele, que não tem o mesmo gosto, posição política ou moral. Porque o cristianismo põe a vida acima de tudo, sobre todos os demais valores, acima de dinheiro, gênero, opinião, verdade ou razão.
Para um cristão, a vida – seja ela de uma pessoa, de um cachorro, de um pássaro ou de um terrorista – tem valor! Em hipótese alguma o cristão deseja a morte, o fracasso, a dor de alguém. A vida é dom de Deus, a vida é divina, é a representação do Soberano, é a manifestação visível, prática, palpável e real do Sagrado! Não há possibilidade alguma de um cristianismo que desconsidere a vida. Por isso, o cristão reparte a comida, a coberta, o dinheiro, o remédio!
Contraditoriamente, tenho visto um tipo de gente – nem vou chamar de cristã –que anda com a bíblia debaixo do braço e prega a morte, principalmente a alheia, através do descaso, da indiferença e até do deboche. Uma gente que fala de Jesus com a boca e com a prática faz tudo o que não tem relação com Ele. Alardeia que tem “Deus acima de tudo”, o que me assusta ainda mais, afinal, que Deus é esse que não traz misericórdia, compaixão, amor. Que prega guerra, bala, tiro, tanque de guerra, imposição, intolerância, prepotência, arrogância, soldado, como solução para problemas sociais!
Essa é a religião inaugurada agora, talvez um pós-cristianismo, deformado, adulterado, desconectado com Cristo, na contra mão de sua pregação. Essa é a religião do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, minha pele primeiro, minha dor primeiro, minha fome, meu filho, meu conforto, meu direito, minha palavra e minha razão! Uma subversão ao Cristo, à cruz, ao amor, ao Deus que tanto amou, para que amássemos também. E ainda citam a Bíblia como referência, o Antigo Testamento sempre, esquecendo que o cristianismo só existe no Novo Testamento, com o surgimento de Jesus Cristo, que transformou a regra, cumpriu a lei, introduziu amor, paz, fraternidade desfazendo qualquer confronto, morte e condenação!
Talvez seja propício lembrar as palavras do Apocalipse (22: 18 e 19): “declaro a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: se alguém lhe acrescentar algo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro.Se alguém tirar alguma palavra deste livro de profecia, Deus tirará dele a sua parte na árvore da vida e na cidade santa, que são descritas neste livro”. Um alerta a todos os que acrescem ou retiram palavras e comportamentos, deturpam o evangelho, solapam o cristianismo, sabotam sua pregação trocando princípio por farinha, preocupados com os próprios pirões, com o próprio interesse, trocando o Cristo por ambição e cobiça.
Nilson da Silva Júnior é pastor e professor.