De Deus e do Diabo

De Deus e do Diabo

Tinha ele sete anos. Juntou seus centavos, foi até a única papelaria que que havia na praça central da cidade e comprou uma máscara de carnaval. Era época de carnaval. A máscara, uma careta de palhaço feliz, colorida, em um papel mais grosso que uma cartolina, era presa na face com elásticos finos que passavam por sobre sua cabeça. Era bem maior que sua cabeça de sete anos, mas era uma máscara de carnaval. Não sabia o que representava. Apenas que tinha na face a caricatura de um palhaço feliz.

De posse daquela intenção de fantasia, na qual depositou seus centavos e estavam suas gotas de sonhos, foi exibi-la para sua prima, na casada tia. Sim. Todos têm uma tia. Uma tia faz parte de toda narrativa. A tia, religiosa fundamentalista que era, pediu para ver a máscara e a criança lhe deu. A tia, num discurso apoiado na figura do demônio, rasgou o sonho da criança com direito a uma pregação, dizendo que aquilo era coisa do diabo, que só gente que adora o “coisa ruim” usaria aquilo. A criança ficou assustada. A criança ficou sem a máscara. Os sonhos mudaram. Máscara? Nem pensar! Não faria o pacto com coisa ruim.

Em seu mundo imaginário alimentado pelas narrativas, as máscaras continuaram. De muitas formas. Vilões usavam máscaras. Era verdade que mascarados eram quem tinha a parte com o demo. Todas os seriados mostravam os bandidos mascarados. Mas, epa! Algo não lhe fora bem contado, pois os heróis também usam máscaras! Zorro, Batman, Fantasma, Homem-Aranha… praticamente todos os super-heróis, com alguma exceção, também usam máscaras. Por que Super-homem não usava máscara quando era herói, e sim quando Clark Kent? Por que os papéis estavam invertidos? A criação divina não era o homem? Por que esconder o homem com a máscara? Ou aqueles óculos grossos não eram máscaras?  E a confusão estava feita em sua cabecinha… Máscara era do bem ou do mal? Para o bem ou para o mal?

Aquela tia, presa e limitada em suas crenças castradoras, não tinha noção do que fizera ao garoto. Não lhe rasgara uma máscara, não lhe dera uma aula de catequese, que era a sua intenção primeira. Atribuiu, sim, um sentido demoníaco a uma peça que tanto servia ao mal quanto ao bem, visto que o mal e o bem precisavam de máscaras para acontecer. E ele, numa filosofia infantil, via isso em um papelão com desenho de palhaço, em uma festa profana.

O tempo. Que tudo cura e nada esquece… trouxe um “novo normal”. No novo normal, agora sem aspas, bandidos e mocinhos para viver devem usar máscaras. Isso de acordo com a Lei nº 14.019/2020, que obriga o seu uso em lugares públicos, e com a lei humanitária que faz cuidar do outro e de si necessário. Isso como medida preventiva para uma pandemia. Tal medida foi no mundo todo. Tal qual a festa pagã.  Ou a tia estava certa, a máscara e a pandemia eram coisa do demo? Mas impossível! Do demo é o vírus! A máscara é de Deus, que protege o homem do vírus. E quantas máscaras invisíveis são usadas no dia a dia, nos diferentes papéis representados na sociedade. Ou a tia estava errada…

E o mundo virou um carnaval. Um grande baile de máscaras. O menino, agora homem, fala pra tia, tal qual o narrador de “Tempos da camisolinha”, de Mário de Andrade, para a imagem de Nossa Senhora: “Tó! Que eu dizia, olhe! Olhe bem! Tó! Olhe bastante mesmo!”. E ambas figuras não reagem, nem a imagem da Santa, diante da calçola da criança, nem a tia diante das máscaras… porque ambas sabiam o que faziam. Uma porque canonizada. Outra, porque na fé na canonizada. E a tia foi profética. E o garoto, tempos depois, entendeu o sentido de Diabo: o ser que divide. De Deus é o amor: o que une. Do diabo é tudo o que divide. E as máscaras dividem os homens. E o garoto que se fez homem passou a ver o mundo através das máscaras. Quantos papeis sociais lhe foram necessários.

Um mundo dividido pela máscara. Da máscara que no teatro grego romano só deixava à mostra os olhos do ator para interpretar as emoções, à máscara do Fantasma da Ópera que ocultava suas cicatrizes. Do lenço usado ao telefone para mudar a voz quando não queremos ser reconhecidos, à máscara agora obrigatória que muda rotineiramente nossas vozes para nos mantermos sãos numa pandemia. Das agências bancárias repletas de câmaras onde não se entra mais sem elas, quando antes era proibida. De políticos divididos entre usar ou não este equipamento de proteção individual em público como exemplo para a população. Tudo dividido pela máscara.

E assim, na maturidade, ele pode ressignificar o ato da tia. Perdoá-la até. Não que lhe tivesse feito bem tirar seus sonhos pueris, mas porque ela adiantou a ele que um mundo sem máscaras, pois exceto como equipamento de segurança, em qualquer outro sentido que possa existir, o mundo é melhor sem elas. De Deus e do Diabo.

 

 

 

 

 

 

Elder de Santis é professor e mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba.

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