No dia 07 de janeiro de 2015 acontecia um crime indefensável e injustificável na redação de um semanário satírico francês, o Charlie Hebdo. O nome, que nos ficou tão familiar por se repetir de forma frenética em todos os meios de comunicação existentes na atualidade, foi responsável por despertar o mundo para um novo debate que, apesar de nem tão novo assim, estava adormecido no inconsciente cotidiano visto e não percebido, não discutido, não aprimorado. A razão (se é que existe alguma razão para tamanha atrocidade) do massacre que silenciou a maior parte dos jornalistas responsáveis pela publicação, e também policiais, foi causada por uma reação completamente desproporcional de um grupo extremista islâmico, em virtude de uma charge ácida sobre o profeta Maomé – o qual, segundo a religião mencionada, não pode nem ser representado.
A partir do ocorrido, muito se falou de liberdade de expressão, regulação de mídia, extremismo religioso e limites para o humor e a opinião. Opiniões oficiais de veículos se antagonizam, personalidades e jornalistas divergem e o consenso está longe de despontar perante qualquer uma das questões mencionadas. Porém, mais importante do que as respostas são as perguntas. As perguntas incitam o diálogo, a discussão, a revisão de conceitos e movimentam a evolução humana. O progresso, na troca de ideias, nunca deveria ser pago com a morte dos jornalistas e suas canetas venenosas. Mas, com toda certeza, o triste fato consumado contribuiu nessa perspectiva.
A liberdade de expressão, além de ser um direito constitucional inviolável, não é mais passível de ser derrubada. Tudo o que os terroristas conseguiram, ao liquidar a redação do jornal, foi difundir ainda mais as ideias dos ousados formadores de opinião. Um jornal local se abre para uma perspectiva mundial graças à santa tecnologia e à globalização. Não há mais espaço no mundo para a violência contra a palavra, porque ela não mais está escrita em um periódico restrito. As palavras despejadas hoje, em qualquer canto do mundo, são ampliadas em proporções impressionantes e não podem ser cerceadas. O sangue derramado não cala as ideias, apenas as torna imortais.
Em relação à ação doentia e desumana praticada pelos terroristas, não há o que discutir. Não há argumento, explicação, justificativa plausível ou aceitável. Entretanto, a tragédia nos levantou outra pauta. A partir do caráter satírico, sarcástico e radical que o veículo carregava, começaram os questionamentos: deveria o humor ser submetido a alguma regulação? Qual o limite que separa a opinião da falta de respeito? Ou a falta de respeito faz parte da sátira? E a sátira está acima dos sentimentos humanos? A ofensa deve ser respeitada ao desrespeitar?
Não há consenso. Não acredito que deva haver regulação oficial, porque a censura é relativa e poderia servir interesses específicos de modo muito sutil e, ao mesmo tempo, totalmente antidemocrático. Ao mesmo tempo, as consequências existem para todos os atos humanos, sejam eles carregados de virtude ou desprezíveis. A justiça deve agir quando houver qualquer tipo de violência, simbólica ou não, contra qualquer indivíduo, cidadão ou tribo que se sentir lesada.
Há pouco tempo, um famoso humorista brasileiro “fez piada” com a principal doadora de leite materno do Brasil. Ao comparar a técnica de enfermagem que viaja 80 km cotidianamente para entregar leite ao banco de um hospital ao “kid bengala”, ao sexualizar o ato de amamentar, comparando o tamanho dos seios da moça a posições sexuais, o humor acabou por fazer um desserviço à sociedade. O resultado? A moça, responsável por 90% do estoque de leite de determinada região, não quer mais contribuir. É chamada de vaca nas ruas e se sente humilhada. Sua produção diminuiu drasticamente. Esse não é o único caso em que o humor ultrapassou as risadas e feriu.
Mas dizem que, ao retratar Maomé, o profeta da religião islâmica, os jornalistas buscavam atacar uma instituição poderosa e fundamentalista em sua esfera mais radical e não os religiosos que vivem na França, já então hostilizados pela intolerância. O humor estaria então sendo inteligente? É possível dialogar com extremistas religiosos a partir de uma mensagem simbólica, cínica e debochada? Quem entendeu a mensagem foram os cidadãos islâmicos anônimos que vivem suas vidas na margem das ruas de Paris, nos subúrbios onde são subjulgados por sua religião. Ainda doloridos pela ofensa à sua crença, tem de carregar o peso da culpa que não os pertence.
Fanáticos religiosos de verdade, aqueles tão bem representados pelo Estado Islâmico, Al Queada, entre outras seitas travestidas de religião, não poderão nunca enxergar a crítica implícita naquelas mensagens. Tão cegos estão que os seus egos jamais poderão ser afetados com palavras. Suas armas são desleais. Não há como estabelecer uma discussão com quem ataca pelas costas, com quem entra pela surdina e mata, tira a vida e não sente remorso (destruindo famílias e glorificando um Deus deturpado). Essas pessoas que mutilam mulheres, escravizam povos e despejam sua ignorância em forma de lavagem cerebral nunca se atentarão à mensagem. Para fazer humor é preciso ser inteligente, ter a sensibilidade de captar o público para o qual se destinam suas sátiras.
Não é sobre temer, se enfraquecer perante o pânico que eles buscam despertar. É sobre saber dirigir a mensagem. Cada situação requer uma ação. O “jogo de cintura” deve existir na vida e no papel. Quem pagou por tudo? Os mártires que buscavam questionar o sistema, com certeza, com as melhores intenções. E os islâmicos que buscam fundamentar os verdadeiros valores de sua religião e que nunca concordariam com a violência que esguichou daquela redação.
Criar uma regulação seria um retrocesso às lutas que dignificaram a expressão como autoridade legítima. Ao mesmo tempo, defender qualquer manifestação em qualquer circunstância, implica ignorar e negligenciar as necessidades individuais e coletivas que também devem ser respeitadas. Quando houver ofensa, incitação ao ódio, mentira, difamação, preconceito, o profissional ou a instituição devem ser punidos dentro dos limites da lei. Cada país terá a sua dentro de seu contexto cultural e soberano. Não queremos silêncio e sim discussão. Se para argumentar tivermos de cessar as vozes, cedemos então espaço para a tirania.
A complexidade do assunto tratado só demonstra que o absoluto não traz nenhum resultado. As diversas faces é que trazem a verdade. A pluralidade é que garante a democracia. Os excessos devem ser contidos judicialmente e avaliados democraticamente e a criatividade e o humor não devem nunca ser suprimidos de suas manifestações espontâneas, reais e indispensáveis na sociedade contemporânea. Abaixem as armas! Que possamos prosseguir nessa infindável discussão com nossas palavras, opiniões e canetas.
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Gabriela Andrade Ferraz é aluna do 7º semestre de jornalismo da Universidade Metodista de Piraicaba/Unimep.
Há duas (ou mais) questões expressas no artigo que me suscitam duas reações distintas. A primeira, óbvio, é o repúdio ao o que ocorreu no Charlie Hebdo por mais que eu considerasse, dentro do que tive acesso, o tipo de humor que à mim não me convém, que eu não faria e que, sinceramente, não contribui para nada a não ser criar banhos de sangue e reações de ódio.
Também repudio essa forma fundamentalista, seja de que tipo de religião seja, cristã, islâmica, o que seja sendo que o fundamentlaismo cristão está cada vez mais parecido com o islâmico e há pouca gente que consiga (ou queira) assinalar o que está acontecendo com a gravidade devida.
Quanto a regulação da mídia, sinceramente, é uma discussão onde os veículos são vítimas e algozes quase em igual medida. No Brasil (onde posso avaliar mais detidamente) a maioria da grande imprensa tomou um lado e nem está aí em emporcalhar a honra de quem quer que seja , invertendo ela princípios igualmente constitucionais como a presunção de inocência, cláusula pétrea de nossa carta maior e cujas consequências individuais são imensamente prejudiciais, ou seja, vc desencadeia processos que considero civilizatórios (combate à corrupção, à criminalidade, ao mal uso dos dinheiros públicos etc) utilizando meios que margeiam a barbárie, destroem inapelavelmente a honra das pessoas, fato sem recuperação. Alguém já viu algum veículo, editorial e publicamente, discutir esse fato?
Mesmo assim, concordo com Gabriela que há de se questionar o controle externo e a publicade, enquanto comunicação social, tem um meio ótimo e já amplamente testado que é o da auto-regulação que, de nenhuma forma, confunde-se com censura. Porque os jornais não fazem o mesmo?
Talvez, como dizia o Dylan, “a resposta está ao vento” ou, talvez, seja inconfessável. Parabéns à articulista pela bela contribuiçaõ. Abraço ao povo do Diário!
Que belo artigo!! Conteúdo muito bem abordado e que suscita a discussão sobre o assunto.
Embora alguns trabalhos produzidos em veículos de comunicação possam desrespeitar ou ferir os valores de alguém, de uma classe, ou de uma religião como foi o caso, eu acredito que a censura não seria a resolução . O que se faz necessário é uma regulamentação. Como você falou: “os excessos devem ser contidos judicialmente”, a liberdade de expressão não pode ser censurada ou limitada. É uma conquista de todos e que promoveu, de certa forma, a evolução da socieda em muitos aspectos.
Parabéns pelo artigo!
Parabéns, Gabriela Andrade Ferraz, minha sobrinha e afilhada! Mais uma vez estou orgulhosa, não apenas pela qualidade do teu texto, muito bem construído, mas pela forma sensível, sensata, equilibrada, plural como um assunto tão polêmico e com tantos vieses ideológicos, religiosos e políticos, foi posto em discussão. Foram colocadas na mesma mesa de negociações, interpretações inter, pluri e multidisciplinares, pois demandam um diálogo aberto e maduro entre os envolvidos e que permitem que se analise as ações ou os fatos, na perspectiva de objetos ou sujeitos históricos. Ai está a essência de uma análise jornalística, que procura privilegiar os sujeitos históricos, sem preconceitos e sem radicalismos. A “nova história” é que deve ocupar o lugar da história oficial, censurada e tendenciosa!
Frases como “Se para argumentar tivermos de cessar as vozes, cedemos então espaço para a tirania” dão força para uma luta tão importante dentro da liberdade de expressão. Parabéns pelo excelente texto, que aborda o assunto de maneira clara e deixa uma opinião firme sobre a tragédia ocorrida.
Matéria inteligente, sensível e ao mesmo tempo forte. Apesar da complexidade do tema, o texto conseguiu descrever com clareza o problema abordado e a sua essência, nos levando a refletir sobre o fato em si, sobre o impacto de nossas atitudes no(s) outro(s) e até mesmo de nossas posições frente ao contexto atual. Parabéns Gabriela. Precisamos de textos que nos tire da zona de conforto, que nos obrigue a pensar mais profundamente sobre os fatos não nos permitindo nos contentar com abordagens superficiais e massificadas.
Gabriela fez uma análise profunda de um tema que desperta paixões. A meu ver foi muito feliz em sua afirmativa : ” As perguntas são mais importantes do que as respostas”. É uma grande verdade. Gabriela relatou os fatos com grande propriedade. Traçou um perfil claro de um mundo distante de nós. Ao mesmo tempo mostrou o quanto é prejudicial a intolerância, a maledicência, no caso da mulher que amamentava. A crítica que atinge com mais força é a que utiliza o humor, o sarcasmo. Um dos pilares da democracia, da convivência, é o respeito, mesmo que haja discordância de opiniões.
Gabriela escreveu um belíssimo artigo.
Parabéns!