A despeito da tragédia absoluta da pandemia no Brasil, com mais de 90 mil mortos até aqui, tento, para preservar a sanidade mental e o ânimo, imaginar que um país melhor emergirá de toda essa catástrofe. Mas, para isso, penso que precisamos usar parte do tempo de nosso isolamento para refletir sobre vários problemas que nos assolam já há muito tempo. Neste sentido, gostaria de dar uma contribuição, sugerindo um tema que está relacionado com o que passamos agora: a incompatibilidade entre o discurso econômico de crescimento contínuo e a ideia de sustentabilidade ambiental.
Vários amigos, sabendo da minha formação em economia, me perguntam sobre livros introdutórios que possam ajudá-los a compreender melhor as discussões que observam na mídia tradicional (jornais, revistas, canais de rádio e televisão) e também nas redes sociais (web). O meu autor favorito é um coreano, professor em Cambridge, com um nome bem marcante para nós: Ha-Joon Chang. O professor Chang é autor, dentre várias outras obras, de “Economia: Modo de Usar”. Trata-se de um livro muito bem humorado e que conta todos os segredos que boa parte dos economistas e jornalistas econômicos querem esconder de você. Dada a dica, vou pinçar dele apenas uma informação importante para nossa conversa: as principais escolas de pensamento econômico.
Em seu livro, o professor Chang analisa nove dessas escolas. Exatamente isso que você leu, nove! E, segundo ele, essas são só as principais. É difícil dizer qual é o número total de escolas do pensamento econômico, pois isso sempre se altera, e seu número atual talvez ultrapasse as vinte. Eu sei que isso deve ser um tanto surpreendente para você, que assiste aos meios de comunicação todos os dias e só ouve uma única abordagem. Pois é, este é um dos mais graves problemas que temos em relação ao debate público da economia: sua completa falta de diversidade. Mas isso é uma questão para outro dia. Por hoje, vamos nos concentrar na questão do crescimento econômico e sua contradição com a preservação do meio ambiente.
Voltando ao professor Chang e as nove escolas, a pergunta que fica é: por que pensar nelas seria relevante? Simples! Quando um economista está num posto de tomada de decisão – digamos, secretário de fazenda municipal, estadual ou principalmente ministro da economia – ele é sempre questionado sobre as razões de uma ou outra atitude e, em geral, não dirá: fiz porque sou o ministro da economia, sou eu quem manda e me deu na telha agir assim! Ao contrário, com certo ar blasé (sabe aquela cara meio distante?), o sujeito comentará sobre a “realidade” econômica, citará uma ou duas estatísticas gerais e justificará sua ação, explicita ou implicitamente, com alguma ideia ou conceito de uma dessas nove escolas.
Vejam, o economista que está na linha de frente da ação cotidiana tem uma enorme responsabilidade e está sempre sobre grande pressão. Os temas que interessam a todos e que foram martelados pela mídia em nossas cabeças ao longo dos últimos 100 anos estão muito bem definidos: crescimento econômico, emprego, renda, consumo, inflação … e por aí vai. Assim, um tomador de decisões não pode agir de modo a aparentar insegurança ou desconhecimento acerca do futuro (por mais que esse seja o caso). Sempre que pressionado, buscará argumentar da forma mais próxima possível de um discurso lógico e científico. O objetivo disso, naturalmente, é tranquilizar e animar todos nós. Busca ainda sugerir que o economista sabe o que está fazendo e conhece bem a dinâmica econômica – e, se houver algum problema, saberá o melhor caminho a seguir.
De modo geral, a mera existência de nove diferentes escolas de pensamento econômico, mesmo que estas representem apenas o núcleo principal, não é exatamente um problema. É óbvio que isso indica uma significativa fragmentação das compreensões sobre o funcionamento e a dinâmica da economia, o que não deixa de ser preocupante, primeiro por conta de todo o esforço e dedicação sobre o tema, mas – em especial – pela importância que ele assumiu na vida de todos nós. Aliás, não se pode desconsiderar o papel dos inúmeros e enormes interesses econômicos nas dificuldades em se construir consensos na área. Entretanto, ao contrário do que se poderia pensar, minha maior preocupação não está nas muitas e variadas divergências, mas numa hipótese implícita em praticamente todas as linhas de pensamento econômico: a inexistência de limite para o crescimento da capacidade de produzir bens e serviços.
Não sei se você, que me lê agora, se deu conta do tamanho da encrenca? Todas as teorias formuladas para descrever a dinâmica do sistema capitalista – ou, como no caso da Marxista, para criticá-lo – assumem um processo de aumento contínuo da capacidade de produzir. É como se o funcionamento do capitalismo fosse como andar de bicicleta, ou seja, se você para de pedalar, ela tomba. A questão é que essas escolas, ou as ideias que inspiram as mais recentes, foram desenvolvidas num momento muito específico da história. Naquela altura, para produzir nós retirávamos recursos da natureza e gerávamos poluição numa velocidade inferior a capacidade da terra de se regenerar. Em algum momento do século XX nós ultrapassamos este limite e hoje, claramente, já estamos em um quadro ambiental gravíssimo, caminhando aceleradamente para o abismo. É óbvio que isso já foi notado – aliás, desde a década de 70 do século passado. Inclusive, já fizemos duas grandes cúpulas mundiais para discutir o clima e tentar encontrar uma saída. Mas concretamente parece que não estamos avançando no plano da ação.
Pior ainda do lado da economia, basicamente a causadora de toda essa situação. Aqueles homens e mulheres que formulam as políticas econômicas são reféns de um quadro teórico e de uma narrativa de funcionamento da economia em que a ideia de limite simplesmente não existe! Deixa eu tentar ser mais claro (clareza não é uma coisa fácil para os economistas). Não adianta os economistas utilizarem aquelas nove escolas para pensar um jeito de sair do buraco ambiental e social em que estamos enfiados. Todas elas estão contaminadas com o mesmo vírus que nos colocou no buraco. Repetindo mais uma vez: a lógica que resolverá o problema não pode ser a mesma que o criou.
Loucura? Não! Tudo isso é fruto de uma lógica muito própria, ainda assim, uma lógica. Quando ela deixou de funcionar bem, não a questionamos, apenas conseguimos uma desculpa adicional, que passou a resolver retoricamente o problema da inconsistência entre produção infinita e limites do meio ambiente: a inovação tecnológica. Mas como ficou a narrativa com esse novo acréscimo? Ficou assim: em algum momento, antes de cairmos no abismo ambiental, inventaremos uma tecnologia que nos fará voar, salvando todos nós! E é uma excelente desculpa, afinal de contas, nós inventamos muita coisa interessante ao longo das últimas décadas.
Foi até fácil convencer as pessoas de que precisamos inovar sempre e que a tecnologia irá, mais cedo ou mais tarde, resolver todos os nossos problemas. Assim, dia após dia, continuamos a repetir que a saída é a tecnologia e que podemos continuar a viver do mesmo jeito. Mas, dia após dia, as coisas continuam piorando. Alguns até questionam e criticam tal estratégia, mas os economistas, baseados nas escolas de pensamento de sempre, respondem: a solução é aumentarmos a produtividade, investindo mais em educação e inovação tecnológica. Certamente faltam investimentos em educação, mas não para uma educação apenas tecnológica, o que não significa que ela não seja importante, mas junto com o conhecimento tecnológico, precisamos de mais história, de mais sociologia, de mais filosofia e principalmente de mais arte. Precisamos de uma educação crítica, que nos transforme tão profundamente que, por fim, nos ajude a retomar a noção ética de limite e a traçar novos caminhos para a convivência humana. A solução para o abismo que se aproxima talvez não seja voar, mas mudar a direção.
Alexandre Motta é economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp. Foi secretário de finanças de Piracicaba, subsecretário de planejamento, orçamento e administração dos Ministérios do Planejamento e da Fazenda e diretor-geral da Escola de Administração Fazendária (ESAF), em Brasília.
O seu artigo me atraiu do inicio ao fim. Nunca tinha pensado por este viés. Agora estamos sendo distraídos pelos grandes interesses, a palavra é tecnologia. Ela vai resolver tudo. Mas não.
Não sei mais para onde vamos. Produção de alimento, bens de consumo em grande escala e o meio ambiente. Incompatíveis. Ou seja, é o fim.
Alexandre escreva mais sobre esse binômio: alta escala de produção e meio ambiente. Seu artigo me instigou…quero mais
Muito bom. Precisamos aprofundar essa discussão e não deixar que os que hoje dão as cartas mantenham os antolhos em uma parte da sociedade e queira pôr na outra
Eu acredito que tudo passa pelos valores; inclusive os modelos e econômicos. Seu artigo me faz pensar que para muda de direção a humanidade precisa antes valorizar, massivamente, outras coisas mais que o poder econômico. Quem sabe, um dia….