Há quem diga que poesia não aceita tradução, que a alma da palavra poética desvanece, se não evapora, ao ser obrigada a deixar o território idiomático no qual foi escrita. Até mesmo na própria língua do poeta, os leitores são incapazes de “traduzir”, literal e objetivamente, o sentimento, a sensação, a atmosfera, o pathos, a epifania, “plasmados” pelo autor nos seus artefatos artísticos. E, adicionalmente, há que se admitir: ler poesia não é para qualquer um – exige a demorada e laboriosa construção de uma familiaridade com a palavra expressiva (e não meramente comunicativa) que costuma se situar muito acima da média. É com clara consciência dessas dificuldades genéricas, e admitindo, particularmente, a incapacidade de superá-las, que aqui se comete o atrevimento de falar de Casa Burguesa Sem Chave (Ouro Preto: Caravana Ed., 2024), do multiartista e professor piracicabano Alexandre Bragion. Trata-se do aceite de um convite: “A minha casa agora está aberta…” (p. 12), “jamais te perguntarei se trouxeste a chave.” (p. 13)
Quando se lida com a palavra expressiva, importa mais a forma que o conteúdo – em verdade, o “segredo” do artífice vocabular reside na justa adequação entre forma e conteúdo. Então, por que não buscar esse elemento estético-valorativo no conjunto da obra em questão?
O livro trata exatamente de uma casa. Ali estão poemas cujos títulos, misturados, providenciam a estrutura e os elementos arquitetônicos de uma morada no interior da mátria minha: um belo portão-poética que dá acesso a um jardim com paineira, pesada e dura viga-mestra, janela, vitrô, claraboia com goteira que estrala sobre o ralo da cozinha, e saída que dá para um quintal noturno onde há um varal. Dentro da casa-memória-nostalgia-saudade (uma casa portuguesa, ma non troppo, com certeza), indefectíveis objetos: portarretrato e porta-joias, uma vitrola, um quadro-poema, um aquário ao lado de um oratório feito um poema sem verbos, uma deslocada esfinge ao pé da escada que o eu do poeta (Mus(eu)-gravura a decorar a sala) encara sangrando sem poder morrer; no quarto, com um dossel, a cama, para que seja possível estar Na cama com Valery; e tudo o mais que um poeta precisa: escrivaninha, estante-instante e, para compensar, uma biblioteca sem Hamlet, uma amoroteca.
Uma casa, sim. Mas não uma casa qualquer: a morada do poeta – aliás desprovida, como se viu na descrição, dos alicerces do opaco pensamento desencantado e do telhado sobre os caibros maciços do preconceito. Uma casa plantada no céu-inferno-purgatório do tempo-rio-que-passa-indiferente, que a permeia, de alto a baixo, do portão à saída, do jardim ao quintal (aliás, noturno); sem que o tempo-duração (essa verdade humana face à morte) passe despercebido, pois ali estão a ampulheta (“filtrando as cinzas das horas”) e a folhinha com as páginas viradas (tudo que se foi e não mais será – como aquele Novembro sem Jaime Ovalle) e as páginas por trás da que se vê na data presente, páginas por virar (abertas a tudo que virá, se vier). Tempo, tempo-recortes (antemanhã ou madrugada, 3 da tarde, amor é tarde, quase noite); tempo que há, próprio para tudo na face da Terra, de banquete à novena.
Casa sem chave. Repleta de poemas com múltiplas palavras-chave, a serem recolhidas abrindo as páginas iluminadas por luzes tênues, que não ofuscam os olhos, a fim de que se perceba que há luz na escuridão, assim como escuridão na luz, a depender do cômodo ou incômodo que se está iluminando. Casa burguesa? Com certeza?
Entre, sente-se – não repare a falta de um sofá. Escolha o seu preferido e beba com vagar. Este, o meu, se pudesse escolher:
Pêndulo a bater sozinho,
O relógio na cozinha mostra o que foi e o que falta:
um pedaço de pão, meia garrafa de vinho. (“Ampulheta,” p.45)
Valdemir Pires é escritor e economista.
