(Crônica publicada nesta terça, 1 de agosto de 2017, em A Tribuna Piracicabana)
Ai de mim! Ai de mim, Piracicaba! Ai de mim, Noiva da Colina, tantas vezes traída, tantas vezes enganada. Onde o pulsar de tua gente, senão no ritmo rente batido a pino na proa dos barcos em tardes de derrubada das Festas do Divino? Ai de mim! Ai de mim! Onde a sua alma mais crua, mais pura, do que nas procissões religiosas – hoje quase esquecidas – que ainda há pouco lhe adornavam as ruas? Onde a tua reza fiel, cheia de fé e dor, descendo em cortejo pelas ruas Boa Morte ou Governador? Onde aquela cobra imensa, feita de gente devota, a desfilar contente pela janela crente adornada em toalhas de tricô? Um vaso de flor te recebia, uma vela a passagem te iluminava, quando descias à praça central carregada nos andores do nosso amor. Ai de mim, minha Noiva traída! Ai de mim, cidade querida! Quem te vendeu? Quem te enganou? Quem te trocou pelo sonho de imensidão, pela ilusão da riqueza de um casamento arranjado com os poderosos do rincão? Ai de mim, minha Noiva roubada. Ai de mim, Piracicaba, tantas vezes maltratada.
A tua voz real não soa a ferro e metal, não se anuncia no ronco de um motor. Não. A tua voz, cidade, de verdade, é o encanto de quem sempre te cantou. A tua voz é a da noite, é a dos cururueiros e seresteiros – Cobrinha, Coimbrão, Pedro Alexandrino, Bolão (o grande Bolão que ainda hoje resiste bravamente e nos dá a graça de sempre lhe ouvir uma canção). A tua voz, ó cidade amada, é a voz da tua gente simples, até engraçada, que força o “r” sem saber da poesia falada que constrói em cada “porta”, “porteira” e “portão.” Ai de mim, Noiva querida! Ai de mim, Noiva amada. Que a tua voz é feita da música entoada por gente valente que canta contente e em louvor a ti – mesmo sabendo que, iludida, tu já não sabes amar como antes. Porque agora tu és social, tu és elegante e arrumada. Hoje, frequentas caríssimos concertos ao lado de pessoas engravatadas que, do que ouvem, não entendem quase nada. Hoje, a tua voz sonora e concreta não pode ser essa, dominada e triste, que ecoa em comerciais e cruéis rodeios – nem esse teu canto enlatado que obedece a regras burocráticas, plutocráticas, aristocráticas de cantores “estrangeiros.” A Vox Demo, a voz do teu povo, essa parece que se apartou de ti entre tantas “cracias” assumidas. Ai de mim, Noiva iludida. Ai de mim, Piracicaba!
Onde estão as tuas flores e teus encantos senão encaixotados por grandes gabinetes, por imensos e caros escritórios? Onde pode, sossegada, a sua gente beber o néctar sagrado de tua cana – pura, com limão ou abacaxi? Para onde foram, por exemplo, tantos e tantos garapeiros que víamos aos montes pelos mais variados bairros da cidade? Por onde andam seus filhos que estavam rindo, alegres, descontraídos? Estão aqui e ali convertidos em sérios vendedores autorizados, em empregados sacrificados em executivos descolados que habitam poderosas instalações – multinacionais, megastores, hipermercados. Onde a poesia de seu rio, agora magro e coberto de espumas e pontes – “para que tantas pontes, meu Deus,” diria eu, parafraseando Drummond, “porém meus olhos não dizem nada.” Onde estão seus blocos de rua, seu carnaval, sua arte livre, espontânea e popular? Seu clube de Regatas, seus cinemas, seus teatros famosos? Perdemos a poesia que nos caracterizava? Perdemos a segurança que nos entusiasmava a deitar cadeiras nas calçadas ao cair da tarde – enquanto, jogando conversa fora, tomávamos “a fresca?” Ai de mim, Piracicaba querida! Ai de mim, Piracicaba perdida entre contratos escusos e falaciosos. Ninguém compreende a grande dor que sente um filho teu que, a suspirar por ti, te vê hoje tão diferente, tão moderninha e fora de tua raia. Ai, Piracicaba, hoje és uma Noiva que vive de minissaia!
Mas há esperança no ar? Há o saudosismo de outrora a motivar seus filhos a desejar um eterno retorno ao seio quente da mãe-cidade? Há a energia do encontro no Largo dos Pescadores a nos dizer que é possível, a nos mostrar que juntos somos mais fortes e que, um dia, poderemos te ver renascer e te sentir novamente nossa, inteiramente nossa, ó cidade amada? Há no horizonte o brilho de novos dias a nos te trazerem de volta? Esperemos. Esperemos e saudemos a ti. Saudemos a tua memória, cidade querida. Guardemos urgentemente o que sobrou do teu legado, de tua essência. E que, mesmo impossíveis, nossos votos sejam de que em ti não mandem mais os poderosos. Que sobre ti não haja mais donos, mais nada. Vibremos apenas os sentimentos calorosos de quem realmente só quer a ti, de tua gente que te vive e trabalha, “que faz versos, protesta”, de tua gente amada.
Parabéns, cidade de Piracicaba que um dia fomos!
Saudades de quem vive aqui.
Olá caro Bragion,
Obrigado pelo texto inspirado, a nos tocar tão profundamente. Seu texto se constitui como um genuíno presente para Piracicaba, na celebração de seus 250 anos. A magia de seu texto não deixa de denunciar a ausência daquilo que a cidade nunca foi completamente e abandonou no presente enquanto perspectiva. Mas seu texto também é um sonoro convite, vislumbrando um devir de tudo o que Piracicaba poderia ser.
Você nos coloca o desafio de construirmos uma cidade sem donos, aberta à arte e cultura. Uma cidade perdida em um passado quase mítico, tomado por poesias e múltiplas possibilidades. Talvez a política, resgatada enquanto ciência que busca organizar – a partir da ética do bem comum – a vida em sua coletividade, devolva-nos nosso sonho de cidade.
Com cordial amizade, Adelino F. Oliveira
Caríssimo professor Adelino.
Grato, mais uma vez, pela leitura e ponderação. Certamente, como o professor bem aponta, é um norte deste espaço lutar pela construção social do bem comum. Da mesma forma, e temos no professor um companheiro importante nesse sentido, buscamos também favorecer a reflexão sobre os problemas que atingem diretamente nossa coletividade.
Um grande abraço e obrigado pela colaboração de sempre!
Alexandre.