Banalidade do Mal e Violência no Contemporâneo

Que fizeste? Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim!

Gn 4,10

Ó terra, não cubras meu sangue, não encontre meu clamor um lugar de descanso!

Jó 16,18

 

Tornou-se cada vez mais comum, nas periferias de centros urbanos, o assassinato de inocentes, pessoas anônimas, que se tornam vítimas de um processo brutal e crescente, que tende a banalizar a violência. A inoperância do aparato da justiça, ao deixar tais crimes sem solução, e o abandono da elevada ética do amor, herança da tradição cristã, acabam por promover e dinamizar um perverso ciclo vicioso, produtor de mais violência, a brotar do sentimento de impunidade e do profundo vazio existencial.

O tema da banalidade do mal aparece nas análises teóricas e existenciais da pensadora Hannah Arendt. Para a filósofa, o totalitarismo pode promover e instaurar tanto a banalização do mal – a violência generalizada, a difusão e disseminação do terror –, quanto o mal radical, a face mais perversa, cruel, sádica da violência e do sofrimento. Hannah Arendt, com o conceito banalidade do mal, procura traduzir e expressar uma situação na qual a crueldade e violência assumem e tomam o cotidiano da existência. A banalidade do mal se torna realidade quando a perversidade passa a se constituir como algo comum e costumeiro, que deixa de causar estranhamento. A violência passa a fazer parte do cotidiano de maneira tão intensa que não produz espanto algum. O mal se torna banal quando os homens passam a agir sem raciocinar, perdendo o horizonte das consequências e do significado das ações de violência extrema.

A violência excessiva, cruel, generalizada, que se vive, reina nas periferias dos grandes centros urbanos, sob os auspícios da pobreza, da miséria, da total ausência de possibilidades humanas, nos terríveis domínios do tráfico de drogas, não deixa também de se configurar como expressão da banalidade do mal, espaço e lugar do mal radical. A violência talvez tenha se tornado uma das características mais problemáticas das modernas sociedades ocidentais. No contemporâneo a violência assume os mais diversos rostos e matizes, apresentando-se de formas variadas, disseminando terror e medo como sentimentos e realidades cotidianas.

A violência banalizada configura-se como o espectro sombrio que ronda e assombra a civilização. Os índices de violência por meio de homicídios dolosos apresentam-se como realidade assustadoramente crescente. O número expressivamente elevado de homicídios evidencia a dinâmica de uma cultura rendida à violência. Milhares de pessoas, jovens principalmente, sofrem os horrores de uma violência banalizada, que não encontra limites, a reinar em um espaço no qual não há lei, nem ordem, nem justiça. Vidas humanas brutalmente ceifadas, abortadas, exterminadas clamam por vingança, justiça, reparação.

A vulnerabilidade social acaba por atingir com mais incidência a camada da população pobre, que ocupa as periferias dos centros urbanos. O desenvolvimento econômico, a sofisticação tecnológica, a moderna sociedade de produção e consumo não têm se revelado capazes de superar o fosso social que ainda insiste em demarcar diferenças de classes no contemporâneo. A ausência de estruturas básicas, compondo um quadro de precariedade, acentuada pobreza e evidente exclusão social, define-se como o pano de fundo de uma violência endêmica, a atingir, sobretudo, os jovens pobres. A miséria material, a privação de condições objetivas lança o indivíduo em uma existência sem possibilidades, sem sonhos.

A ausência de justiça, configurada na impunidade dos atores da violência, agrava o quadro de flagrante violação dos direitos humanos. Os dados revelam um número surpreendente de ocorrências de homicídio sem solução, milhares de inquéritos policiais abertos e arquivados sem alcançarem êxito condenatório. A vítima inocente clama por justiça, grita à vingança de sua causa. O homicídio praticado contra inocentes, milhares de indivíduos anônimos, sobretudo jovens pobres – só no Brasil os índices revelam que são mais de 150 mil homicídios sem solução –, exige reparação, justiça. O que está em jogo, em questão, em pauta,é a manutenção e perpetuação da própria civilização. O assassinato de um único inocente que não alcance justiça, que não contemple uma reparação mínima pode significar a emergência do caos, o esfacelamento social, a destruição de toda ordem, a instauração da barbárie.

É preciso que seja investigada as causas mais profundas da violência, sedimentada na fruição do desejo mimético, estimulado, aguçado pela sociedade de consumo e competição. O desejo mimético movimenta a bestial violência de todos contra todos, gerando um processo de aniquilamento mútuo. A mimese situa-se na base originária e remota da civilização. A suplantação do ciclo de violência, por meio do desvelamento da lógica do desejo mimético, compõe-se como a condição fundamental à civilização. O processo vitimário e o mecanismo sacrificial constituem-se como essenciais para o apaziguamento social. Torna-se essencial compreender as consequências de uma violência sem reparação, sem justiça, a compor um quadro de impunidade, perpetuando um ciclo de infernal violência. Se o princípio da civilização tem como fundamento a superação da violência generalizada, a violência brutal que se vive hoje pode significar a instauração do caos, da barbárie, a destruição da própria civilização.

A banalização da violência emerge como desdobramento da própria ausência de justiça. A impunidade, a total falta de consequência, a certeza da não punição desvela-se como responsáveis por fazer girar o ciclo bestial de violência. O homicida, ao sair impune e ileso após desferir – de maneira covarde, perversa e cruel – o golpe brutal e fatal, normalmente por meio de arma de fogo, sobre o outro indivíduo, privando-lhe do direito à vida, não experiência as consequências de seus atos, tornando-se pronto, apto e disposto a novas ações brutais e violentas, ceifadoras de vidas inocentes.

 É preciso considerar também, como causa da banalização da violência, a lacuna deixada pelo abandono, negação dos princípios do cristianismo, a denunciar a violência contra o inocente. A ética cristã, alicerçada no princípio do amor incondicional, sustenta a dinâmica do perdão, suplantando toda forma de violência. Ao esquecer e se afastar do legado, das perspectivas da elevada ética cristã, a sociedade contemporâneo submerge na mais terrível violência, abraçando o caos e a barbárie.

A justiça revela-se como condição imprescindível para a paz. O assassinato incólume de indivíduos – milhares de jovens pobres, que vivem em condições subalternizadas nas periferias de grandes centros urbanos – clama por justiça, exige reparação. A violência gera, produz um duplo mal, tanto para as vítimas quanto para o agressor. Depreende-se que o agente da violência tem as possibilidades de sua humanidade suprimidas; a demência toma corpo, o benefício de discernir ausenta-se; o ser humano encontra-se em risco, quando exposto a toda má sorte e barbárie. É imprescindível que se resgate ainda a dignidade dos agressores, afastados, privados da condição de humanidade, apartados do sentimento de pertença e vínculo sociais. Apenas mediante o resgate da elevada ética do amor, fazendo emergir uma nova humanidade, a romper com a dinâmica do desejo mimético, e a instauração da plena justiça abrirá perspectivas capazes de conter, suplantar a livre fruição da violência, a conduzir à ruína da civilização.

 

Adelino Francisco de Oliveira é professor de Ética e Teologia na Faculdade Salesiana Dom Bosco de Piracicaba e Colégio Salesiano Dom Bosco de Piracicaba.

10 thoughts on “Banalidade do Mal e Violência no Contemporâneo

  1. DEU MEDO! parabéns pela matéria, mas essa realidade retratada de forma nua e crua nos passa medo, é muito preocupante os caminhos que a sociedade trilha nos últimos 40 anos, na minha visão de leigo existe um cesto de atos que é a verdadeira semente do mal, entre eles ‘direitos e liberdade incondicional’ defendida por muitos , lá nos anos 60 quando as mulheres iniciaram sua luta por igualdade esqueceram que não haveria quem ficasse em casa cuidando e educando os filhos, indo contra a natureza onde pai e mãe tem papel distintos, até os animais tem uma mãe cuidando e educando, depois vieram os gritos de rebeldia e liberdade, onde tem inicio a grande explosão de uso de drogas, depois veio o fim da estrutura familiar com o divorcio e liberdade sexual, agora a imposição da tolerância e extinção dos princípios diante das minorias barulhentas e inconsequentes, cujo efeitos na sociedade só serão visualizados daqui algumas décadas e onde só Deus sabe onde vamos parar!
    todos sabemos que os caminhos estão errados, mas poucos fazem algo para muda-lo!

    1. Prezado Sr. Idinaldo,

      Agradeço pela interlocução. No entanto, apenas quero deixar claro e evidente que não compartilho, em absoluto, de suas concepções e conclusões, particularmente no que se refere a questão e lugar da mulher…

      Não faço nenhuma relação entre o problema da banalização da violência com as conquistas e avanços sociais. Ao contrário, entendo que a violência explode quando não há direitos, nem liberdade.

      Esteja bem!

  2. Retrato brilhante e impiedoso da atual situação em que vivemos.
    Reconfortante perspectiva de redenção com a possibilidade do olhar da humanidade através da ética do amor, em todos os níveis, mas, penso eu, principalmente, no âmbito familiar. É, para mim, o principal esteio para pacificarmos a sociedade. E me nego a senti-lo como uma fantasia utópica. Considero uma filosofia de vida.
    Parabéns, mais uma vez, professor Adelino, pela competente e excelente reflexão.

    1. Estimada Zilma Bandel,

      Obrigado pela interlocução qualificada. Como pode ser rico e fecundo esse espaço de discussão… Também concordo que a família se constitui como o espaço fundamental de formação. O núcleo familiar pode se compor como uma rede de proteção… Uma experiência familiar equilibrada, pautada em laços de amor e solidariedade, é certamente essencial…

      Esteja bem!

  3. Seu texto chegou num momento tristemente oportuno, Adelino. Ou tratamos de fazer justiça ou estaremos entregues à violência organizada. Também concordo com você quando diz que “A suplantação do ciclo de violência, por meio do desvelamento da lógica do desejo mimético, compõe-se como a condição fundamental à civilização.” Parabéns pelo texto! Abraço!

    1. Querida Carla,

      De fato vivemos em tempos sombrios… Mas é preciso considerar que há muito de midiático na maioria das reportagens sobre violência… Infelizmente as raizes mais profundas da violência não têm tido lugar nas preocupações da média da imprensa. Há uma violência que se perpetua a séculos no Brasil…

      Esteja bem!

  4. Adelino, saindo do meu universo de esclerodérmica continuo neste mundo e sofro também pelo meu semelhante, principalmente quando assisto os telejornais, com notícias tão ruins, tão tristes e geradoras de indignação. Vemos todos os dias manchetes sobre assassinatos, corrupção, sobre o sistema de saúde falido, crimes justificados pelo preconceito: violência gratuita contra mulheres, negros, homossexuais, moradores de rua; crimes ambientais: árvores sendo cortadas sem dó, nem piedade, usinas hidroelétricas desviando curso de rios e extinguindo fauna e flora, a natureza respondendo aos desaforos do materialismo, do individualismo e egocentrismo, dos capitalistas e de cidadãos comuns movidos a preguiça, pela ganância, pela indiferença frente aos males provocados contra o meio ambiente e contra o próximo. Sem contar crianças desprezadas pelas mães e pela sociedade, pessoas como ratos na Cracolândia, na política: ministros caindo, mas mantendo o dinheiro público em suas ricas contas bancárias no exterior. Diuturnamente nossos olhos e ouvidos são contaminados por estes assuntos que em nada eleva a nossa alma.
    Seu texto grita na nossa consciência!!! A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.

    Jean-Paul Sartre

  5. Estimda Profa. Cida,

    Alegro-me muito por ler seu comentário. Não deixa de me tocar o coração sua densa e crítica reflexão. De fato a violência se manifesta nas mais diversas formas, assumindo vários rostos e configurações. É preciso que se zele pela vida, toda vida.
    Talvez você não imagine o quanto é bom, é gratificante poder ler e apreender com suas ponderações. Obrigado pela possibilidade de uma interlocução tão qualificada.

    Esteja bem!

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