Ao amigo Erico Bisson (da tradicionalíssima e atuante Casa Rosário)
À eterna Lourdes Salles (da inesquecível e também eterna Casa Salles)
Houvesse ainda o de antes e aqueles potes plásticos estariam de certo por ali, repletos de doces olhares e açucarados desejos: paçocas, cocadas, rapaduras de leite. Houvesse agora o balcão de granito – o velho balcão preto e opaco, salpicado de furinhos brancos – e a vitrine das mais pastosas tentações infantis também poderia ser vista em seus vidros quase leitosos: pedaços de maria-mole, bananadas, geleias sírias brancas e vermelhas. Acho que dedos vacilantes ainda sustentariam no ar transbordantes xícaras de amendoins japoneses. E no último nicho do baleiro, esconder-se-iam agorinha mesmo figurinhas de jogadores de futebol enroladas em salivantes chicletes de menta, camuflados – por sua vez – entre montes de Balas Chita de abacaxi.
Instalado para sempre na esquina da minha infância, os armazéns vendiam também a minha gula de imaginar – recusando-se a oferecer, contudo, os secos e molhados da filosofia que eu precisava. Para onde iam os velhos comerciantes depois que a porta de aço se fechava? O que faziam eles do existir após às dezoito horas? Talvez dormissem por ali, entre os pacotes de bolacha e as garrafas de Itubaína. Talvez repousassem recostados à geladeira sobre a qual costumeiramente se via sempre dependurada uma grossa fatia de bacon, talvez se mimetizassem às prateleiras e aos enlatados – embutindo-se neles – e de lá só saíssem às oito horas da manhã seguinte, novos em folha como maços de cheiro-verde. Ou talvez, ainda, fossem eles, armazéns e comerciantes, uma só entidade.
A vida no armazém da esquina sempre me pareceu ser pesada na balança manual do cotidiano – oscilante e trabalhosa – travada entre sacos de arroz e pacotes de pó de café moído na hora. Nunca entendi bem aquilo. Nunca entendi como alguém poderia viver dessa maneira: dias, semanas, meses e anos entre produtos de todos os tipos, empilhados em altas estantes – mas aparentemente isolados do resto do mundo. Vizinho a um desses velhos armazéns, eu via o respirar da natureza ser controlado ali dentro e anotado em cadernetas de débito/haver. Via a paisagem estática da rotina postada na cesta de especiarias, via o andar encoleirado do homem sobre o meio-fio que se trilhava lateralmente – de lés-a-lés – atrás do balcão. E ainda ouço, até hoje, os rumores de suas gentes: freguesa reclamando da demora, outra querendo mais um quilo.
A esquina vazia da vida do tempo presente, no entanto, revela mais que o fechamento dessas antigas casas comerciais. O vazio das vendas de outrora registra a giz, na lousa de ofertas do dia, a extinção de uma parte de nossa cultura interiorana. Subtraída por hipermercados, por mega-stores e pelas grandes redes, o fim quase oculto dos armazéns de esquina sepulta – de maneira igualmente silenciosa – uma instituição das ruas do comércio: a figura respeitável dos antigos comerciantes. Aqueles que conheciam seus fregueses pelo nome e pelas suas compras diárias. Aqueles que, mais do que vendas, faziam amigos – e sempre guardavam um dedo de prosa para as conversas com a freguesia. Aqueles que, chovesse ou ventasse, jamais saíram detrás de seus balcões gira-mundo.
Sem rancheirismo ou declinação saudosista, o cheiro do fumo de corda desses armazéns volatizou-se em eterno. O café quente no copo americano, de hoje, não invade mais as narinas da populança – e as caixas registradoras não cantam mais os tilintosos agudos que tanto ressoavam no ouvido e na alma da criançada (que menino daquela época não queria ter, de brinquedo, uma caixinha registradora?). Os comerciantes “do antes,” os velhos espíritos das ruas dos corredores comerciais, encerraram-se, quase todos, com as portas de seus estabelecimentos. E na memória do tempo presente, tempo rarefeito, poucos ainda resistem (brava e quase literariamente) sufocados em meio a lojas frias e impessoais, envenenados pelo oxigênio da atmosfera de hipermecados repletos de calefação e gélidos aparelhos de ar-condicionado.
Que pena. Fosse outro tempo, outro mundo, e a vida ainda seria efervescente nesses velhos armazéns. Tão efervescente como uma boa e gelada Gengibirra servida sobre o balcão.
Caro Alexandre
Você não imagina como fiquei feliz lendo a sua crônica “Balcão”.
Saiba que você é uma pessoa que admiro muito, alguém realmente especial, e receber esta surpresa fez o meu dia muito mais feliz.
Como comerciante,nem sempre lembramos que acabamos fazendo parte da história e do dia a dia das pessoas,não só dos fregueses,das pessoas,com todos os seus sonhos,dores e aspirações.Muito obrigado meu Irmão pela bela homenagem,imagino que na Dimensão que estiverem,dona Lourdes Salles,Alfredo Bisson(meu pai e primeiro mestre) e tantos comerciantes,também ficaram honrados e felizes com suas palavras.
Erico
Grande amigo Erico Bisson! Agradeço pela sua generosidade. Obrigado! Certamente, Alfredo Bisson e Lourdes Salles representam aqui nesta crônica uma vertente quase extinta de antigos “comerciantes” – vertente essa da qual você e a Casa Rosário são, felizmente, bravos e fortes herdeiros . Caloroso abraço!
Lindo texto. … Valeu ! Matando a saudades do ” armazém da Casa Salles” , esquina de casa , infancia e adolescencia … Velhos tempos..
Valeu, Glau! Obrigado!
Nossaaaaa,que belo texto! Saudoso e vivo ao mesmo tempo.Mexeu com lembranças, atiçou o olfato e aguçou o paladar. Até da caderneta de anotações com capa verde claro eu me lembrei.E quantos pés de moleque não busque iapós o almoço dos dias de semana na casa Salles.
Parabéns Alexandre, por nos proporcionar essas recordaçes magníficas, que fizam parte de nossas vidas.Beijos.
Valeu, Mi! Brigadão!
Parabens pela sensibilidade!! Que saudades !!! Senti o cheiro do po de cafe moido na hora, o cheiro das bolachas de chocolate , o perfume das flores do quintal…da Deca Helena D Aga e historia de uma vida , vivemos um conto de fadas infelizmente ou faelizmente temos que aceitar o progresso e Piracicaba progrediu muito
Como voce tem estas fotos …obrigada pelas lembrancas foi uma volta ao passado bjao na sua mae
Realmente, um texto muito lindo e emocionante, voltei ao passado e também senti os sabores e
os aromas, principalmete ao do café moído na hora e detalhe, sempre o Morro Grande rsrsrrs .
A voz da tia Dequinha quando atendia o telefone dizendo: “Casa Salles boa tarde” resumindo…… saudades eternas das minhas queridas tias que marcaram demais minha vida !
Obrigada pela homenagem Alexandre, um abraço
Eu é que agradeço a todos vocês, familiares e amigos das queridas “Deca” e “Helena.” Cresci ali, no pé desse balcão sobre o qual escrevi. E guardo comigo as sensações todas daquele tempo. Obrigado a todos pela leitura e generosos comentários. Grande abraço!
Alexandre.
Parabéns pela crônica, texto sensível e de extremo bom gosto, remeteu a momentos inesquecíveis, com direito a som e sabor…Casa Salles bom dia…assim atendia o telefone a saudosa “Tia Deca”…o calendário que era trocado dia a dia, os sacos alvejados para pano de chão, o café moído na hora, etc…Parabéns novamente
adorei me lembrei da venda da Colaca na esquina da r. do vergueiro c. 15 de novembro, minha ma~e comprava na caderneta . nossa saudadesssssss.
nossa
saudades da minha infancia, lembrei da venda da d. Colaca esquina da r. 15/antonio correia barbosa .
Não sou de Piracicaba, nem de São Paulo, sou silvajardinense de uma cidade do interior do Rio de Janeiro, mais guardo na lembrança os armazéns secos e molhados, agradeço por ter vivido esta época, sabe minha mãe me conta que quando nasci meu querido pai me pesou em um armazém desses, então entende como essa história faz parte da minha vida, lembro quando minha mãe me levava com ela no final do mês ao armazém para fazer as compras, era divino pois ficava sentada no balcão e olhando tudo que tinha lá dentro.Que lindo! Existia uma atmosfera diferente onde uma fatia de mortadela dada pelo comerciante parecia algo infinitamente maravilhoso.Obrigada por você ter essas lindas memórias e compartilhar.
Que delícia de texto! Li e reli com um sorriso estampando nos lábios do começo ao fim!