Convidada a elaborar um texto com minhas lembranças e vivências por conta do golpe cívico-mitar de 1964, confesso que me sinto insegura pela minha não formação política. Resolvi, assim, aceitar o convite me propondo a mostrar o que o golpe significou para mim pessoalmente, em frustrações, inconformismo, tristeza e revolta.
Na manhã de 31 de março de 1964 estava, bem no início de minha condição de universitária, assistindo à aula de zoologia do curso de Biologia, minha opção de estudo, na USP, em São Paulo, minha cidade natal. No intervalo, descemos ao estacionamento para conversas, novos contatos e paqueras com os alunos de medicina veterinária que usavam o mesmo estacionamento e faziam intervalo no mesmo horário. Os alunos abonados que tinham carro sempre nos brindavam com música nesses momentos. Nesse dia não havia música. Eles nos chamaram para ouvir o que estava acontecendo: informes, noticiário sobre o golpe militar.
Minha vida até esse tempo foi só de estudo, nada de politização. Sempre estudei muito. Política nunca foi do meu gosto e também não arrumava tempo para esse tipo de informação, conversa e análise. Na minha ingenuidade, pensava que as notícias que escutava eram de situações que em muito pouco tempo se resolveriam. Foram 21 anos de ditadura!
As informações que me chegavam diziam de muitas prisões, inclusive de professores, desaparecimentos, terríveis torturas, mortes. Começaram tempos traumáticos. Impossível deixar tudo isso passar em branco na minha vida. Eu não podia ficar indiferente a tanta truculência. Assim, com a indignação, começou meu interesse e meu posicionamento político.
Perguntava, com dificuldade de compreensão, por que professores de ótima produção científica e acadêmica – considerados e respeitados internacionalmente – eram chamados para depor, eram presos, quando os considerava fazendo parte da elite intelectual e científica do país. Logo soube que o problema era pensar e se manifestar de modo diferente dos novos ocupantes do poder. Eram perigosos? Por quê? Muitos foram convidados para trabalharem em universidades do exterior. Depois, foram para o exterior nossos bons artistas. Talvez também fossem perigosos…
Conheci uma estudante de letras da USP, irmã da técnica do laboratório onde fazia iniciação científica. Ela ia frequentemente ao laboratório para conversar com a irmã. Eu não perdia nenhuma oportunidade para estar com elas. Era muito falante, alegre, cheia de sonhos para fazer do Brasil um país com justiça social. Por tudo isso foi presa algumas vezes. Resolveu ir para o Araguaia. Foi presa, torturada barbaramente – segundo relatos de companheiros – e morta. Seu corpo nunca foi entregue para a família. Minha querida Helenira Nazareth, por quê?
Sentia que eu precisava fazer alguma coisa, dentro das minhas possibilidades. Comecei a frequentar uma missa que acontecia no Mosteiro de São Bento aos domingos à tardinha. Descia do ônibus na Praça da Sé e ia a pé até o Mosteiro. Para alcançarmos a capela, onde acontecia a missa, subíamos uma longa escada em caracol. Lá estavam pessoas que queriam saber do paradeiro de seus parentes e amigos, pessoas que tinham algumas informações, e pessoas – como eu – que queriam ser orientadas para ajudar de alguma maneira. Os relatos eram muito tristes.
Era um dos momentos mais importantes da minha vida naquele tempo. Conheci pessoas incríveis, outras muito sofridas, outras ansiosas para ajudar. Ia embora com a noite fechada. Ia sozinha até a Praça da Sé para pegar meu ônibus, cheia de medo de ser seguida. Nunca aconteceu, felizmente.
Acabando meu mestrado, tive a ótima experiência de dar aulas no Colégio Vocacional – de pedagogia progressista, da melhor qualidade. Aprendi muito, inclusive politicamente, e passei a ver a educação com olhos esperançosos. Entre outras e muitas leituras, li Caio Prado Jr. Casando, vim morar em Piracicaba.
Aos poucos, fui fazendo amizades. Quando a conversa era política, logo percebi que a escolha da maioria com que entrei em contato era militarista. “É muito certo o país estar na mão dos militares, honestos e fortes o bastante para acertarem o país.” Passei a ficar em silêncio.
Hoje, inconformada, indignada com novas tentativas de golpe de estado, sinto que é essencial que aprendamos lições do tempo de trevas que o golpe civil-militar implantou no Brasil há 60 anos.
Ditaduras nunca mais!
Deixo aqui minha homenagem a muitos que lutaram para nos livrarmos do governo forte. E quero a compreensão de vocês para homenagear a linda e alegre jovem cheia de bons sonhos para seu querido país.
Fique em paz, querida Helenira. Seus sonhos estão em mim, nas pessoas que amam de verdade o seu, o nosso Brasil que alcançará a justiça social.
NOTA DO EDITORES: Helenira Nazareth foi filiada ao Partido Comunista do Brasil (PC do B). Líder estudantil, chegou a ser vice-presidente da UNE. Presa em 1968, foi jurada de morte pelo delegado Sérgio Fleury, mas libertada por meio de um habeas corpus. Integrou-se à chamada Guerrilha do Araguaia e ali, em 1972, num confronto com fuzileiros navais, foi torturada e morta. Seu caso foi um dos investigados e documentados pela Comissão Nacional da Verdade.
Zilma Bandel é Bióloga, formada pela USP, SP, e pós-graduada em Genética animal. Foi professora no ensino médio e da Unimep, nos cursos de Pedagogia e Educação física.
(Foto: Manifestação estudantil anos 70. Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo)
O texto da Zilma me trouxe lembranças parecidas com a minha própria experiência de estudante universitária, gostei muito da leitura, pela clareza com que ela deu seu depoimento, descrevendo fragmentos de sua experiência pessoal! Ditadura, nunca mais!
Olá, Míriam!
Agradecemos pela sua leitura e mensagem.
Um abraço!
Os editores