As diferentes memórias da esquerda e direita na crise da Unimep

As diferentes memórias da esquerda e direita na crise da Unimep

O Congresso da UNE, realizado em Piracicaba em 1980, teve uma importância histórica na luta pela redemocratização. O Congresso da Juventude Palestina – quando falar em palestinos remetia  a grupos terroristas no imaginário brasileiro – também foi um marco. As vindas de bispos católicos – que ousavam enfrentar a ditadura – em congressos e para serem homenageados abriu espaço para outros saberes. A formação de uma Associação de Favelados, com voz e força para levar prefeitos a abrirem o diálogo com o grupo, fez reconhecer o quanto a cidade sofria com a multiplicação de suas favelas e a precariedade da moradia. Os encontros de metalúrgicos, de Sem-Terra, de docentes, onde era possível se discutir novas reivindicações, direitos e greves, puderam se realizar sem o peso da repressão.

Eram os anos 1980. E tudo isso aconteceu na UNIMEP, em suas salas, seus espaços democráticos, em seu Salão Nobre no centro da cidade. Difícil pensar alguém de destaque da esquerda que em algum momento não tenha recebido o apoio, garantido o espaço, sido aplaudido por professores, alunos e muitos da comunidade local que buscavam conhecê-los. De Luiz Carlos Prestes a D. Paulo Evaristo Arns, de Clara Charf a D. Helder Câmara, de Dante de Oliveira a Ruth Escobar, de Rui César Costa e Silva a Paulo Freire, entre tantos outros que se poderia listar.

 Cada um destes eventos, cada uma destas visitas, merece um relato amplo – ou vale uma pesquisa para quem lê esse texto – para que novas gerações possam entender aquele momento, o que Piracicaba e a UNIMEP tiveram de importância num processo longo, democrático e cheio de riscos para quem acreditava que era hora de afastar os militares do poder e garantir uma outra visão de sociedade para o Brasil.

No entanto, é como se tudo isso se tivesse esfumaçado nas memórias das forças mais avançadas e progressistas – ou mais à esquerda, se assim for mais fácil qualificá-las. Ninguém mais se lembra, ninguém mais menciona tudo isso.

Mas os radicais de direita – que desde sempre habitaram espaços da Igreja Metodista e que hoje se multiplicam por quase todos os segmentos do país – é que não se esquecem.  E num momento de uma crise que praticamente desmancha a UNIMEP tal como era e como desempenhou o papel real de universidade, é como se buscassem vingança. Afinal, não foram poucos os comentários em postagens sobre o desmonte, em que as vozes mais reacionárias novamente mostraram sua raiva. Não raro, a explicação para a crise atual aparece como o fato de os “esquerdistas” terem tomado a Universidade desde aquela época e a entregue apenas à baderna, a rumos que não deveriam ter sido seguidos, a negar espaços verdadeiramente cristãos aos metodistas, seus verdadeiros donos.

Depois da reunião realizada na tarde de hoje (03/03), pela Câmara Municipal de Piracicaba, buscando reativar o Fórum em Defesa da UNIMEP – criado em 2017, em crise anterior – a certeza que me sobra é que essa Universidade que se tornou conhecida e reconhecida nacionalmente, a instituição que deixava a cidade com orgulho por seus números, seus espaços públicos, seus compromissos, não existe mais. E certamente não adianta a ilusão de que essa mobilização poderá trazê-la de volta.  O estudo técnico, defendido por um grupo autointitulado nova liderança metodista durante a reunião, e que hoje responde pela Rede Metodista de Educação e pelas decisões que envolvem também a UNIMEP – por eles mesmo dito com pleno apoio da Igreja Metodista – indica outro rumo, outros objetivos, outra prática cotidiana na qual vale pouco o reconhecimento aos docentes, o respeito aos alunos, até mesmo o cumprimento da legislação trabalhista. O palavra mais utilizada pelo atual reitor foi “reconstrução”.

Não surpreende.  É um reflexo do país, de um tempo em que é possível agredir, tentar recontar o passado, buscar apagar os avanços, garantir impunidade e privilégios àqueles que pensam cada vez mais distanciados da população mais pobre e dos que ainda insistem que é preciso lutar por direitos fundamentais de educação, saúde, moradia e até alimentação.

A crise da UNIMEP será preciso registrar e contar e recontar, não vem daqueles anos em que a instituição, mais do que nunca, cumpriu se papel de espaço de debate, reflexão, compromisso. A crise atual da UNIMEP não é meramente financeira, mas vem justamente do abandono às propostas que a levaram a ser reconhecida como instituição de qualidade, de definição de políticas não apenas de ensino mas de projetos de extensão que traziam a comunidade para dentro de seus campi. A crise atual da UNIMEP vem do descaso nos últimos anos a professores e funcionários, reforçando administrações que não mais os olhavam como parceiros. A crise atual da UNIMEP vem da visão pequena e cada vez menor de uma Igreja que, tendo durante muito tempo usufruído de recursos financeiros vindos de suas instituições ensino, sentiu-se no direito de exigir que mesmo em um quadro de crescente pressão sobre o ensino superior privado, seus benefícios viessem antes mesmo dos investimentos necessários à manutenção das escolas.

Na seletividade das memórias que nossos tempos vêm mostrando como um novo comportamento, é preciso gravar e deixar para a história a versão correta.


Beatriz Vicentini é jornalista.

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