As cinzas do pornô-soft

Depois da interminável saga de magos juvenis voando em vassouras encantadas, após volumosas narrativas repletas de duendes e anéis mágicos e na esteira de uma sequência de livros que contam as mais insossas histórias sobre vampiros “vegetarianos” (que, pasmem, saem à rua à luz do dia), o mercado editorial mundial dos best-sellers rende-se agora às melosas páginas (com perdão do trocadilho) do chamado pornô-soft. Direcionados basicamente a um público feminino ávido por romances “picantinhos” e por contos de fadas modernos e superficialmente excitantes, livros como “50 Tons de Cinza” – e seus subsequentes “50 Tons Mais Cinzas” e “Tons de Liberdade” – já venderam dezenas e dezenas de milhares de exemplares no mundo inteiro (incluindo-se aí, é claro, as vendas  no Brasil) e tornaram-se um filão comercial que forçou outros autores e editoras a publicarem também os seus próprios pornô-softs. Resultado: livrarias invadidas por romances água-com-açúcar que disputam semanalmente o primeiro lugar na lista dos mais vendidos.

É fato que, ao menos no Brasil, a venda de obras importantes e referenciais da literatura brasileira e internacional há décadas não sustenta nem mesmo o mais simplório dos sebos literários. Por consequência, também não é difícil notar que a força mercadológica dos best-selleres é o que permite que algumas boas livrarias ainda mantenham suas portas abertas em nosso país. No entanto, os livros publicados para o que podemos chamar de grande público e o retumbante sucesso deles em nossas terras tupiniquins sinalizam em alto relevo as quantas andam a leitura e o (mal) gosto da massa brasileira em relação à arte literária. Nesse sentido – e indo além dessa percepção/decepção –, o caso específico dos pornô-softs e da avalanche de livros do gênero que invadiu as livrarias traz à tona também uma intrigante faceta de nosso público leitor feminino: a atração, até então quase sempre velada, pelo universo sexual da prática do sadomasoquismo (SM) e da dominação.    

A questão é, no mínimo, curiosa: se voltarmos nossos olhos para alguns dos “mitos da sexualidade” veremos que boa parte deles deve sua gênese e posterior nominação justamente à tradição literária. Por exemplo, é na clássica poesia da Ilha de Lesbos – da lírica e ardente Safo – que nos deparamos com a primeira bela literalização do lesbianismo. Da Itália medieval, mais adiante no tempo, advêm as deliciosas libertinagens dos contos do Decameron. Da França do século XVIII, as perversas memórias de Tereza Filósofa – clássico pornô sem autor conhecido. E, da mesma França, o velho (e bom!) Marquês de Sade vem a batizar com seu próprio sobrenome as crueldades praticadas, por prazer, em suas libidinosas e cruéis histórias. Finalmente, das letras austríacas, nos chegam a dor e a delícia da Vênus das Peles, do intrépido Barão de Masoch – que, como Sade, também empresta seu nome a uma prática sexual bastante peculiar: o masoquismo (tão badalado nos best-sellers atuais!). No entanto, e aí chegamos ao ponto (G) da questão, se  todos esses “clássicos” estão por aí há anos (e não representam nada mais do que uma bem mínina parcela do vasto campo dos bons livros feitos para serem lidos com uma mão só), por que é que eles nunca caíram no gosto das leitoras de 50 Tons… (as quais, provavelmente, nunca chegaram nem chegarão perto de qualquer um deles)? Qual é o mistério?

Sejamos honestos: como best-sellers que são, os atuais pornô-softs não apresentam quaisquer dificuldades no que diz respeito ao exercício razoável da leitura. Narrados em linguagem adolescente (e que, por assim ser, faz uso excessivo de discursos diretos infantis e monólogos interiores extremamente superficiais e que a todo instante parecem querer bobamente dialogar com “a leitora”), 50 Tons e seus congêneres são obras de facílima deglutição e nada propõem de um exercício mental recheado de situações inventivas ou tramas desafiadoras  e (um tanto melhor) engendradas.  Ou seja, ao exigirem apenas uma mão ágil e alguns poucos neurônios, a linha pornô-soft de tantos tons de cinza apresenta – sem maiores complexidades – passagens “quentes” e docemente “fogosas” que, todavia, não expõem as leitoras atuais a grandes esforços mentais, a crises morais ou a qualquer tipo de contrariedade (seja ela religiosa, social, burguesa etc.) – às quais, possivelmente, tais leitoras se veriam expostas diante de um Sade, de Masoch ou mesmo de Anaïs Nin. Mas, é claro: quem procura “arte,” “filosofia” e “literatura” quando o que se tem em mente é apenas o prazer efêmero – quase sempre desprovido de exigências estéticas, artísticas, conceituais ou teóricas – da fantasia?

Em verdade, se for mesmo verídico o dado que registra a baixa presença de dominadores masculinos em festas e boates SM – como assinalou em uma de  suas crônicas um famoso psicanalista sempre presente nos jornais do Brasil – talvez possamos entender (na era das mulheres superpoderosas e dos maridos transformados em donos de casa) e mesmo aplaudir (sem receios, sem machismo idiota ou preconceitos)  a revelação do desejo feminino coletivo de fantasiar (mesmo que apenas literariamente) sobre o poder dominador e até primitivo do homem.  Sobre isso não há problemas – afinal, cada um deve levar em conta a sua própria fantasia – e aí não reside o desfavor que nos prestam os livros como “50 Tons…” Mas fazer dos romances pornô-softs um sucesso literário estrondoso e incentivar sua leitura como sendo quase que obrigatória e exclusiva entre o público feminino é jogar uma grande pá de cinzas sobre a tradição da literatura erótica mundial – e sobre a própria condição contemporânea do olhar feminino sobre a leitura da literatura. Afinal, o público (incluindo-se aí, agora, o leitor masculino e o feminino) merece poder ler (e fantasiar) coisas de melhor qualidade.

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Alê Bragion coordena o Diário do Engenho

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