Tome-se tipo como exemplar puro, mero conceito, de que os casos reais serão aproximações. O tipo serve, então, para se ter uma noção de possibilidades reais extremas, construídas a partir da observação da realidade, no intuito de entendê-la melhor, graças ao manejo de abstrações reveladoras.
Grosseiramente falando, há dois tipos de caipira: o antropológico (digamos assim) e o caricato. O caipira caricato é aquele indivíduo também conhecido como matuto: sujeito provinciano, tacanho, dado a deslumbramentos diante de novidades. O caipira antropológico é uma figura típica do interior (entendida a expressão como local distante das costas marítimas, onde a vida é mais movimentada e rica de possibilidades por ter sido mais rápida e densamente colonizada), que vive em contato com a natureza e aprecia a vida simples e pacata.
Enquanto o caipira antropológico – caipira legítimo, representante de uma cultura – é um tipo útil para se refletir a respeito das vantagens e desvantagens dos modos de vida rural (simples, bucólico), urbano (complexo) e cosmopolita (sofisticado), o caipira caricato, como revela o adjetivo, é um tipo alimentador de piadas e chistes, além de uma imagem depreciativa do homem que vive em condições típicas do modo de vida préurbano – o próprio Jeca Tatu de Monteiro Lobato.
Piracicaba é uma cidade brasileira muito conhecida pelo rio que lhe dá nome e, igualmente, por ser lugar de caipiras, inclusive dotados de um quase dialeto singular, que logo chama a atenção do forasteiro. A forma como se deu a ocupação de seu território explica em grande medida o fato de ser o berço dessa gente que, evidentemente, foi se tornando outra, com o passar do tempo e o crescimento da cidade, hoje entre as maiores do país.
Nessa que hoje é uma grande cidade, restam poucos caipiras legítimos, minguando o número daqueles que, nas ruas e no comércio locais, chamam a atenção pelo modo particularíssimo de falar. A cultura desse homem-tipo, não desapareceu de todo. Apesar da anemia das políticas públicas para preservar a sua memória, de que o piracicabano médio se orgulha, vestígios importantes são de fato preservados, tanto em acervos como em manifestações e eventos culturais.
De fato, a cidade – a urbanização – engoliu o caipira, depois de mastigá-lo, como aconteceu em todo e qualquer lugar, no Brasil (especialmente no Estado de São Paulo), ao “homem do campo”. No caso específico de Piracicaba, canaviais e usinas de açúcar e álcool fulminaram o modo de vida do pequeno agricultor e transformaram as comunidades em que viviam em imagem de atraso e isolamento. Depois disso, veio a indústria metalmecânica (de início associada aos canaviais) e chegou-se, lentamente, à atual média potência econômica do interior paulista, aquém de Campinas (vizinha sempre invejada) e poucas outras, mas muito além da maioria dos 645 municípios paulistas.
O caipira que restou por aqui não é aquele do tipo antropológico, que cultiva a memória dos antepassados, com a consciência do valor de suas raízes (e com o comportamento correspondente) e também com a certeza de que a “evolução” urbana foi fundamental para o “progresso” hoje vivido. Pelo contrário, remanesceu o caipira de tipo caricato.
É claro que este caipira caricato não se apresenta nem se vê como tal. Não puxa mais o erre ao falar, não substitui a colher pelo garfo nas refeições, não dança a quadrilha em junho, não aprecia de verdade a pamonha como “puro creme do milho”, sente-se deslocado na Festa do Divino, nunca lhe passou pela cabeça pescar na beira do rio… Sobretudo, tornou-se “classe média” urbana que se vê no espelho um pouco acima. E, assim, acalenta um sonho especial de cidade.
A cidade com que sonha o caipira caricato é uma Piracicaba que mistura Dubai (luxo na perspectiva do futuro) com a Riviera (luxo que remete a um passado de grata memória) – o puro creme da exclusividade. Torres espelhadas coloridamente iluminadas à noite, à beira do rio (singrado por potentes jet-skys), em cujas margens se localizam, também, academias de ginástica de grife, cafés “chiques” (no úrtimo, de preferência, como os franquiados americanos), restaurantes que oferecem gastronomia internacional; talvez até um corredor com lojas Chanel, Rolex, Prada etc. Sem faltar, claro (Deus os livre de “flanelinhas”), os manobristas profissionais uniformizados (a que chamarão valets, evidentemente).
Como não há na cidade renda suficiente, nem suficientemente bem distribuída para proporcionar escala para negócios desse tipo e porte, o caipira caricato se contenta com substitutos próximos, imitações, emulações – janelinhas por onde acessar do modo à mão aquelas “vivências” com que se almeja desfrutar o presente de modo pleno (sim, o caipira caricato se vê como um estoico, tal como a autoajuda que ele lê define o modo de vida que alguns filósofos defenderam no passado com este nome).
Eis que, então, vem o especulador imobiliário e diz: conhece Balneário Camboriú? Lá havia “manezinhos”, como caipiras aqui. E a coisa mudou com o empreendedorismo com visão global. Esticaram a praia artificialmente, construíram torres fabulosas, agora a cidade participa da lista de lugares com skyline reconhecido.
– É, pois é, num é memo? – diz o caipira legítimo, “pitando” o seu paiero e chutando de leve o graveto próximo ao banco rústico de pés fincados no chão poeirento na barranca do rio.
Pois é! Vamos ver, então, se virão, mesmo, as Capivara´s Tower. Imagino alguém perguntando, no futuro, a outro com quem compartilha um almoço de negócios em São Paulo:
– Onde você mora, em Piracicaba?
E o sujeito respondendo:
– Na Capivara´s Tower II, de frente pro Rio, quarto andar.
(Este texto é um instrumento de combate. Seu inimigo não é nenhuma pessoa, nenhum grupo de pessoas, nenhuma organização, nenhuma instituição, mas sim um tipo de mentalidade que produz um modo de vida que é, este sim, o inimigo visado, em busca de modos de vida emancipadores, justos e tanto quanto possível, belos.)
Valdemir Pires é escritor e economista.
Texto excelente. Não sou piracicabana de nascença, mas os 45 anos de vivência nesta cidade, onde eduquei minhas filhas e ainda dei à luz um piracicabano, me legitimam opinar sobre Piracicaba. Ao chegar aqui senti a força do rio Piracicaba na formação da cidade e sua cultura.Procurei conhecer seu hino, assisti a apresentação de dança típica como o Cururu, fui à festa do Divino e sempre frequentei rua do Porto. Trazer Torres para este espaço é destruir a identidade deste lugar.