Quando menina, ouvi sempre com alegria a canção “Aquarela”, de Toquinho. Os de minha época se encantavam provavelmente com a singeleza do desenhar a vida, como se assim pudéssemos fazer. “Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo….” E cantarolava a letra com gosto, entre castelos, luvas, guarda-chuvas e aviões, que eu via passar por sobre minha cabeça, eu menina, talvez em casa, numa fotografia aérea, como o poeta Ferreira Gullar. Não poderia saber que os desenhos da minha vida iriam descolorir, como descolorem fotografias coloridas expostas à luz solar, como descolorem as pinturas em aquarela sem fixadores.
Culpar Toquinho? Ah, ele se salva disso porque o final da canção, que a gente passava batido e nem compreendia, já avisava: “Numa folha qualquer/ Eu desenho um sol amarelo (que descolorirá)/ E com cinco ou seis retas/ É fácil fazer um castelo (que descolorirá)/ Giro um simples compasso/ E num círculo eu faço o mundo (que descolorirá)”. Simples assim, ele já nos avisava que toda cor sumiria. Mas ouvimos isso? Mas compreendemos a canção como triste? Não. Nós meninas e meninos a cantávamos como bem alegrinha, talvez por seu ritmo e melodia.
A cor sumiu nestes tempos sombrios. Sumiu a cor vistosa de tudo que havia há décadas passadas. Psicodelia estilística, hippies extemporâneos, sei lá. Era tudo bem alegre, das cores dos carros às cores das roupas, às cores de um futuro em aquarela permanente. Nós piracicabanos perdemos para sempre mestres queridos. Perdemos instituições que julgávamos resistentes ao tempo. Perdemos a Unimep (para sempre?). Vemos se perder a EMP e com ela a música de todos os tempos. Perdemos tanta coisa que nos encontramos, nós os de estilo psicodélico, para chorar um pouco nos ombros uns dos outros. Onde está nosso mundo? Onde estão suas cores vibrantes?
Juntem-se a isso nossas perdas familiares. Perdi meu pai nestes dias. A cor de tudo finalmente perdeu o viço. Enfim o mundo descoloriu. Fez-se noite no meu coração, escura e sem lua ou estrelas. Meu pai tinha sempre um sorriso para nós, mesmo adoecido. E era um sorriso alegre sempre. Era como se tudo pudesse se resolver bem, porque sempre haveria um sorriso alegre. “!Buenos días, señor José!” E ele respondia com um sorriso: “!Buenos días, se me convía!”, cujo sentido era algo como “Bom dia, se você me convida!” Ou seja, o dia seria sempre bom se tivesse a minha companhia, se o convidasse para a vida. Me despedi dele repetindo este nosso diálogo matinal e lhe dizendo que o convidava para estar em meu coração para sempre. E desejei que meu coração fosse colorido para recebê-lo.
Entre lágrimas e despedidas, depois fiquei pensando: o que dizer aos meninos e meninas de hoje? Transmitir a eles a escuridão que senti? Dizer-lhes que o mundo foi colorido e que agora não há mais cores? Muito injusto com eles. Muito injusto com meu pai, a quem devo um coração colorido. Então, como colorir de novo? Eis a questão para minha geração, adulta hoje, pais e alguns já avós. Talvez a própria canção de Toquinho responda isso. Nós a cantávamos sempre. Nós a ouvíamos sempre. Ela se repetia. Tudo iniciava com um sol, como numa explosão original. Caminhava com suas cores e luzes, até descolorir. Assim será a vida. Sempre colorindo e descolorindo. Me lembro de cena do filme “Roma”, de Fellini (1972): chamado a registrar o momento de abertura de um sítio arqueológico, quando de sua descoberta na construção do metrô, ele nos mostrou lindos afrescos nas paredes, há milênios escondidos, e que descoloriram rapidamente, ao entrar em contato com o ar de fora, com oxigênio; cena triste, comovente; não houve como salvar as cores.
E hoje? Com tanta tecnologia, não poderíamos salvar as cores? Talvez. Sabemos que há aquarelas com bons fixadores e isso devemos repassar às novas gerações. Há como fixar cores através de tintas melhores, em papeis de qualidade superior. Além disso, há hoje como digitalizar e salvar em diversos formatos os desenhos e fotos da vida. Congelamos tudo em pinturas e retratos? Uma Roma eterna e sem modificações? Obviamente não. Salvamos as cores do mundo que construímos, que desenhamos e pintamos. E, com isso, ajudamos a construir, desenhar e pintar um futuro novo e quem sabe, melhor. Esta metáfora, meio exagerada para o gosto de Goethe, está aqui para fazer pensar, para animar, para exigir mais da vida e para ajudar corações em luto como o meu. E eu, que ouço a tantos, espero que eu me ouça.
Para terminar com Toquinho: “Nessa estrada não nos cabe/ Conhecer ou ver o que virá/ O fim dela ninguém sabe/ Bem ao certo onde vai dar”. E com Carl Orff: “O, Fortuna/ velut Luna/ statuvariabilis…” Não se sabe o fim. Porque ele sempre é o começo, e está na genialidade do maestro alterar andamentos ou não. Afinal, embora tudo seja variável como a Lua, são a variabilidade e a mudança as certezas de existir futuro. Luto(emos) pelas cores.
Cristina Martins Fargetti é doutora em linguística pela Unicamp, livre-docente e professora na Unesp de Araraquara.
Parabéns minha amiga!
Texto lindo, leve, e paradoxalmente cheio do colorido necessário para superar as Sombras, quaisquer que sejam. O recado para a Humanidade vem sendo dado pelas Alturas faz tempo… Veio o Primeiro Ceifador em 2020, prognósticos de tensões pessoais e coletivas (sim, consegui notar até entre familiares, para minha extrema tristesa), mudanças às vezes necessárias, e por vezes não esperadas.
Fiquemos alertas, mas, com uma lâmpada ao estilo da carta O Eremita do tarô, e, com um Espelho. Este, serve para duas ações: refletir sobre nós mesmos diante das Sombras, tornando-nos como Pedro que curava com sua própria sombra quem por ela passasse (pois a Luz estava nele!), e como arma contra o Maligno e suas obras.
Que brilhe a Sua Luz, seja Luz na vida de todos que te cercam!
Que assim seja, na vida de todos aqueles que lerem esta resposta!
Beijo no coração!
“mardito tecrado”…
Tristeza!!!
Sem “s”…
Obrigada por suas palavras, Pessotti. Estou nestes dias experimentando mais intensamente o jogo de luz e sombra, cor e opacidade. Necessário pensar no futuro, espelho de nossas luminosidades, assim espero. Minha luzinha não é mais que um pequeno candeeiro, perdido na bruma. Um farol para almas é mister de escolhidos e santos. E queira o santo, de quem você tem o nome e que foi dono de explêndida oratória, abençoar estas minhas mirradas palavras.
Abraço fraterno