Acta est fabula plaudite

Acta est fabula plaudite

Por esses dias de reclusão, que agora têm seu fim determinado pela ampla vacinação e não por outros meios preventivos ou preservativos, estava eu a pensar e relembrar os momentos de palco, as participações em concertos, óperas, corais. A experiência é bem diferente da participação litúrgica, do envolvimento com a “opera omnia” da confissão religiosa que cada pessoa possui e, quando possui prática cotidiana, leva a sério os momentos de vivência comunitária e de introspecção pessoal, individual. Quando esse envolvimento não acontece, com certeza, a sensação que se passa para a audiência, para aqueles que nos observa, é semelhante ao atuar do palhaço, que ora nos faz rir, ora nos engana.

O termo certo para esse personagem faz remeter a duas posições, por incrível que pareça. O termo Trickster é caro para a psicologia junguiana, que afirma: “O ‘trickster’ é um ser originário ‘cósmico’, de natureza divino-animal, por um lado, superior ao homem, graças à sua qualidade sobre-humana e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez inconsciente”; ele “continua a ser uma fonte de divertimento que se prolonga através das civilizações, sendo reconhecível nas figuras carnavalescas de um polichinelo e de um palhaço”.

Como afirma Jung, o trickster tem essa dualidade, ou borderline entre o palhaço e o sábio, e se faz presente em diversas culturas em seus mitos e folclores, carregado de ironia, senso de humor e astúcia, ao distorcer tudo que se imagina ser possível, apresentando uma nova ordem secular através da sua figura caótica. Tal arquétipo pode ser encontrado na carta O Louco do tarô, como aquele que vê o mundo de cabeça para baixo, fora da caixinha, muitas vezes com uma lógica invertida ao perceber as coisas como ninguém mais, e assim, consegue vagar nos lugares mais inusitados, garantindo o seu trânsito quase impossível, livre entre o supra e o submundo, capaz de quebrar e reformar regras de forma inesperada em todos os momentos em que se faz presente.

Entre as diversas culturas, pode-se observar esse personagem na mitologia grega, nórdica, eslava, africana, e brasileira. Ele pode ser também visto como herói civilizador, como Prometeu que roubou o fogo dos deuses e entregou ao homem, dando origem à civilização. Nos mitos ameríndios , o  o Coiote para os povos do sudoeste dos Estados Unidos, ou o Corvo para os povos do litoral noroeste do pacífico, Columbia Britânica, Alasca e extremo oriente russo, fazem esse papel de roubar o fogo dos deuses, representado como as estrelas, a lua, ou o sol, maismalandros do que heroicos. Isto é principalmente devido a outras histórias que envolvem esses espíritos: Prometeu era um Titã, enquanto o Coiote e Corvo são geralmente vistos como palhaços e brincalhões. Ainda temos Mercúrio na mitologia romana, Hermes na mitologia grega, Exu na Cosmovisão iorubá e Wakdjunga na mitologia Winnebago. O antropólogo Mircea Eliade mostra que esse personagem capaz de burlar os limites é frequentemente andrógino como o Shiva indiano.

Esse fato intrigante mostra que sua capacidade transmorfa revela sua força de conquista do universo. Ele, que pode mudar de gênero e de forma, alterando seu papel sexual, chega mesmo a engravidar, onde se diz ter uma dupla natureza espiritual. Jung vê nesse simbolismo a harmonização psíquica de Animus e Anima, a imagens internas da Psiquê para masculino e feminino, cuja dinâmica é muito importante no processo de individuação. Na mitologia nórdica, Loki é o trickster que compartilha a capacidade de alterar os sexos com Odin. Conta-se no mito que na sua gravidez, Loki obrigado pelos deuses a parir um gigante, porém, resolveu o problema transformando-se em uma égua e atraiu o cavalo mágico do gigante para longe. Algum tempo depois, retorna com uma criança que tinha dado à luz, o cavalo de oito patas Sleipnir, a montaria de Odin.

Entre os Nagô-Iorubá, Exu, frequentemente andrógino, está na raiz da figura do malandro carioca, com sua navalha lenço de seda e seu terno branco. Certa narrativa o revela como uma criança travessa que veste um chapéu metade azul e metade vermelho, ora é um homem que veste um traje dividido em vermelho e preto. Ele é o orixá mensageiro, ligando homens e deuses, aquele que transporta o axé (energia) e o mobilizador de tudo que existe; sendo dinâmico e em movimento, é a própria vida e a dinâmica do mundo, sobretudo relacionado ao imprevisto e ao acidente (daí a ginga, o improviso e o drible, característicos das expressões afro-brasileiras).

E a Música?

Conde Alma Viva e Fígaro em Rossini, e em Mozart, fazem esse papel dual de um mesmo personagem dividido em duas almas distintas que se completam na astúcia de um trama. Vale notar as óperas Barbeiro de Sevilha e As Bodas de Fígaro dos respectivos compositores.

A cultura americana de massa tem os seus notórios tricksters em: o Pernalonga, o Pica Pau e O Máscara.

E o Brasil, além de Exú?

Certa capital central tem vários…

Que a Força esteja conosco – e os tricksters do bem, para o nosso bem e resiliência.

 

 

 

 

 

 

 

 

Antonio Pessotti é músico, doutor pela Universidade de Campinas (Unicamp), pesquisador colaborador do Laboratório de Fonética e Psicolinguística (IEL – Unicamp) e professor de Canto e História da Música na Escola de Música Maestro Ernst Mahle (EMPEM).

 

 

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