Acho que eu preferia um Deus de pedra

Acho que eu preferia um Deus de pedra

Acho que eu preferia um Deus de pedra,
um Deus-rochedo, sólido como o Corcovado,
e com um Cristo de concreto lá em cima,
visível, palpável, visitável, inequívoco e presente na paisagem,

um Deus que morasse em algum lugar razoável,
num grande palácio, cheio de anjos a servi-lo, e, nos quintais,
santos a conversar à sombra dos quiosques,
trocando receitas de torturas, de benemerências,
de amor ao próximo e de renúncias,
medindo jejuns e vigílias, tudo muito organizado,

e, lá no fundo do terreno, um enorme portão,
conduzindo aos aposentos do diabo, e tudo ao som de harpas,
címbalos e gaitas, e coros afinados, e todo mundo descalço,
andando ao redor do edifício central, onde o Deus-pedra se assenta

num trono de ouro, a dar ordens e soltar raios pelos olhos,
e sua voz é de trovão, e os que passam na rua em frente
correm aterrorizados, tropeçando na fila dos hipócritas que trazem presentes,

e são muito bem recebidos e tratados igual
como embaixadores da angústia e falta de fé humanas,
e o Deus-pedra não os recebe, é claro, mas envia o Secretário,
que anota cada nome num papelzinho, que envia ao Subsecretário,

que repassa ao Chefe da Portaria, e assim por diante,
até chegar ao pastor, pároco ou o que for,
que transmitirá ao fiel suposto a boa nova
da salvação próxima que o aguarda, e da localização de sua cátedra
no jardim dos bem-aventurados,

e dos que pagaram o imposto em dia, e dos que acertaram
a medida certa do puxa-saquismo (nem tanto ao mar, nem tanto à terra),
e que passaram por esse mundo como por uma guerra,
para receber sua recompensa – e que outra razão teria a existência? –
na monotonia inimaginável de uma vida eterna,

e eu penso: como seria fácil assim, e ninguém teria dúvidas,
e não haveria ateus (todos fulminados por descargas de zil volts),
e viveríamos todos amedrontados, debaixo do mesmo céu, a tremer
e esperar o Dia do Juízo, quando seremos condenados,

por crimes que não compreendemos, a penas desproporcionadas,
apenas porque vivemos e, tendo vivido,
automaticamente
nos tornamos objeto da ira infinita
desse Deus-pedra, tão querido, com seu Cristo de concreto

plantado no seu cocuruto, igual àquele que vemos,
de braços abertos, sobre o Corcovado, o Redentor, que lindo!

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.

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