A vadiação na Capoeira Angola em contraposição à sociedade do cansaço

A vadiação na Capoeira Angola em contraposição à sociedade do cansaço

Em uma dinâmica social orientada à produção e um cenário tomado por trabalhadores adoecidos, o ócio surge, ao mesmo tempo, como golpe e afago no ideário popular. O excesso de positividade e a exigência de desempenho impõem pressão aos ombros do proletariado, que se vê obrigado a performar com o mesmo afinco nas esferas profissional e pessoal, incessantemente produtivos e constantemente cansados exploradores de si mesmos. É nesse contexto, em que a exigência do mercado contrasta com a necessidade do trabalhador, que a história se repete e a vadiação retorna como perspectiva de resistência à exploração.

Dentro das relações de trabalho observamos o empregado desprender de esforço a um ofício impessoal, distante e desprovido de qualquer significado ao executor, engajando em uma ação sem visar seu desenvolvimento, nem mesmo o resultado, mas apenas a recompensa que virá deste processo essencialmente alienante, o pagamento ao fim do mês. Esta mesma lógica, de produção alienada de sentido, se repete em diversos ambientes, tornando escassas as práticas gratuitas, que não esperam uma recompensa objetiva, mas tem uma finalidade em si mesmas e em seu tempo. A Capoeira Angola pode ser um resquício dessa gratuidade quando observamos a camaradagem entre capoeiristas durante uma roda e a ausência de vencedores no jogo, o objetivo da brincadeira é vadiar, como desde o início expressava Mestre Pastinha, codificador e mentor primordial desta prática. Contudo, a criminalização da prática de capoeira, no fim do século XIX, integra um processo vexatório contra a população preta e periférica, que caracteriza a malandragem e a vadiagem como imoralidades exercidas por vagabundos, descredibilizando não só a atividade, mas toda uma classe.

Assim como em outros períodos na história, a criminalização de certas atividades tem cunho político e função social. A desarticulação das Maltas, formadas por negros recém libertos, em decorrência da criminalização da capoeira, foi uma forma de garantir o controle e suprimir a insurgência destes grupos, descredibilizando seus praticantes para que fossem largados à margem da sociedade. Vagabundos, preguiçosos e oportunistas, essa é a visão que foi categoricamente implantada sobre esse estrato da sociedade, frequentemente sob uma identidade étnica, como no caso dos baianos em São Paulo onde, apesar de serem a pedra angular da construção e riqueza do estado, são representados até hoje, de forma xenofóbica, com preguiça e falta de gosto pelo trabalho. Não por coincidência, a Bahia é o berço da capoeira, da vadiagem, e o trabalho feito para rebaixar a prática e descredibilizar o praticante, seguindo um ideal colonial de trabalho, rompeu as barreiras do estado e se espalhou por todo o Brasil, desde a origem dos biscates, que tinham o jogo como passatempo durante os momentos de ócio em meio ao trabalho braçal, até os dias atuais, em que nos vemos obrigados a monetizar nossos hobbies e todo o tempo livre que tivermos para produzir, vender e lucrar.

Se a Capoeira surgiu da resistência a escravidão, hoje, o legado de oposição à lógica exploratória do capital e afirmação do ócio na luta anticolonial do povo brasileiro é continuado pelos angoleiros, vadiando, brincando e desafiando radicalmente os ideais capitalistas de desempenho e produtividade introjetados em nossa cultura. Em um mundo cada vez mais cansado e adoecido pelo trabalho, sem propósito e sem perspectiva, reivindicar a ancestralidade da capoeira é mais que um lazer, é a luta pela construção de um novo mundo, um que faça sentido, que contemple as pessoas e seus desejos, que faça do tempo uma medida e não um inimigo, que abandone o adoecimento do capital e permita a socialização do trabalho e de seus espólios.

 


Pedro Paulo Rodrigues é estudante de Engenharia da Computação do IFSP-PRC e praticante de Capoeira Angola – ECRA (Escola de Capoeira Raiz de Angola).

 

(Foto: reprodução)

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