A miscigenação e o sincretismo se destacam como características fundamentais da sociedade brasileira. A miscigenação, no movimento de encontro entre os povos – indígenas, africanos, europeus e outros mais – acabou por forjar um povo novo, genuíno. O sincretismo, de maneira particular, representou a mistura de tantas culturas e tradições. Na violenta dinâmica do processo civilizatório, nasceu o povo brasileiro, com sua cultura criativa, aberta e pujante.
Na complexidade da identidade cultural brasileira, a religião acabou por assumir uma representação fundamental. O sincretismo fez vicejar um campo religioso singular, demarcado pela pluralidade e pela diversidade. Isso não significou a inexistência de conflitos entre as diversas designações religiosas. A busca por uma cultura de tolerância, sedimentada na convivência pacífica e fraterna entre os diferentes grupos religiosos, foi sempre um desafio para a sociedade.
No imaginário religioso brasileiro, as tradições de matriz indígenas e africanas sempre sofreram preconceitos e discriminações, em um contexto de parcial aceitação. Mas importantes perspectivas de diálogos também foram sendo construídas, a partir de teologias e práticas pastorais a enfatizarem o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Apesar de todos os esforços, ainda há muito o que se avançar, no que se pode chamar de democratização do campo religioso brasileiro.
As tradições religiosas se constituem como autênticos patrimônios culturais imateriais. A riqueza e beleza das liturgias, com seus ritos, mitos, símbolos, indumentárias, cantos, gestualidade; a profundidade e sabedoria dos ensinamentos éticos e doutrinais; a memória de histórias sagradas, vinculando os fiéis de hoje a um passado mítico e idílico; a ligação com uma realidade transcendental, apontando para um destino cheio de esperança, capaz de ultrapassar a própria morte são dimensões que perpassam todas as religiões e concedem sentido ao caminhar existencial.
As tradições xamânicas, os povos de terreiro, as diversas designações cristãs, o judaísmo, o hinduísmo, o budismo, o islamismo, o espiritismo e tantas outras expressões religiosas são caminhos, que procuram inspirar e conduzir para a transcendência. As múltiplas manifestações de fé religiosa devem ser respeitadas, de maneira a compor uma dinâmica de convivência pautada pela tolerância e pelo diálogo.
As pretensões de governos neofascistas, que investem e atacam a pluralidade religiosa, em clara violação do princípio republicano do Estado laico, não coadunam com a realidade de uma cultura tão intensamente sincrética, de um povo miscigenado. O ataque à diversidade religiosa não deixa de ser uma violência desferida contra a identidade do próprio povo brasileiro.
A Constituição de 1988, amparada em princípios democráticos universais, garante e resguarda a liberdade de culto religioso. A cidade é o lugar onde os diversos crentes, com suas trajetórias religiosas e histórias sagradas se encontram e convivem. Na dinâmica do direito à cidade desponta para cada crente, que é, sobretudo, cidadão, o direito à prática de sua religião.
A cidade é o lugar da multiplicidade. Faz parte do exercício da cidadania a garantia para que cada pessoa possa desenvolver com liberdade suas práticas religiosas. O espaço da cidade torna-se mais rico e diverso, tomado por uma pluralidade de atividades e movimentos que contemplam o caldo cultural das religiões.
O território das cidades é lugar propício para a garantia destas manifestações. Muito mais relevante é o esforço do poder publico para implementar este direito constitucional. Vale dizer que a sociedade civil também é protagonista quando abraça a ideia do respeito e da tolerância, inaugurando prósperos tempos para uma nova sociabilidade.
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Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal campus Piracicaba.