A parte, o todo e o produto final

A parte, o todo e o produto final

Meu pai, no sítio, criava porcos tanto para venda como para nossa alimentação.  Por isso, uma experiência marcante que tínhamos era o abate dos animais. Era um ritual, envolvia todo mundo: os homens no trato com o animal, as mulheres no cuidado com a carne. Como não havia energia elétrica, tudo tinha que ser rápido por questões de conservação e higiene.  Aproveitava-se o que era possível, da carne mais nobre ao sabão feito com o que sobrava para a alimentação, como parte das vísceras. E conhecíamos todos os sabores das carnes. De todos os cortes. Pois tínhamos o acesso ao todo. Hoje, isso é estranho.

Estranho, pois o todo se perdeu. Não conhecemos mais o todo. Vamos – quando vamos – a uma loja de carnes e compramos cortes: pernil, lombo, costela. E sequer visualizamos ou lembramos que os cortes são partes de um todo. A parte por si só basta. E nos acostumamos tanto com o sabor de uma parte que muitas vezes nos limitamos só àquela fração e nos recusamos a conhecer outra. É a valorização das partes em detrimento do todo. Mas nada se perde. Se no sítio o que não servia para alimentação se transformava em sabão, a indústria moderna fez os embutidos, os “nuggets” da vida com sabor carne e outros subprodutos. “Nada se perde, tudo se transforma”, disse Lavoisier. Não só em merda.

E a relação parte e todo se faz presente em muitas esferas. Na Literatura, temos a obra de terror Frankenstein, de Mary Shelley.  Na tentativa de criar um ser humano, um cientista aproveita da peste que assola o continente e faz um homem com partes de outros corpos e o resultado é uma criatura de aparência física  horrenda. Ao receber a vida a partir de uma descarga elétrica, a criatura que não conhece a maldade tenta se inserir na sociedade. Porém, após inúmeras tentativas fracassadas de aproximação com os demais humanos e pela rejeição dos semelhantes devido a sua aparência, a criatura inicia um plano de vingança sangrenta contra seu criador. “O todo é mais que a soma das partes”, teria dito Aristóteles, ou, “O todo tem uma existência própria, que não depende das partes” conforme a correção da tradução máxima aristotélica atribuída a Kurt Koffka, psicólogo alemão. E estamos entrando numa zona de perigo. Pois metáforas são perigosas.

Da Literatura para a escola, a divisão todo e partes se reproduz. Nas séries iniciais, temos uma professora (raro haver um professor neste segmento) que cuida da classe e ela ensina tudo o que precisa. Ela tem a noção do todo. À medida que os anos escolares avançam e os conhecimentos se aprofundam, surgem os especialistas. Os especialistas do conhecimento mergulham tanto nas suas especialidades que se distanciam do todo. Na segunda fase do Ensino Fundamental, por exemplo, temos Português, Matemática, História, Geografia… enfim, os componentes curriculares. No Ensino Médio, se essa divisão não bastasse, surgem as frentes de ensino: Biologia I, Biologia II, Matemática I, Matemática II, Gramática, Literatura, Redação. O conhecimento sempre mais fragmentado. Raros são os trabalhos inter ou multidisciplinares que possam atribuir sentido a todas as partes. É o Frankenstein pedagógico. São os cortes de carnes no açougue. O mundo moderno pediu que assim fosse, e assim foi feito. Atribuiu-se à educação o processo de uma linha de montagem.

E o resultado disso? Temos a compartimentalização não só do saber, como das profissões. Há pedreiros que não sabem fazer uma casa, apenas são excelentes em aplicar rebocos. Há mecânicos que só consertam freios. Cada um se especializou em um pedaço, porque é impossível o todo. O artesão, assim chamado aquele que dominava o processo todo, deixou de existir. Por ser impossível ou pouco rentável? Algo a se pensar. Nise Yamaguche é o resultado deste processo. É médica e pesquisadora-docente universitária brasileira, com doutorado em Oncologia. Não se nega em hipótese alguma o seu mérito e sua contribuição como oncologista. No entanto, a profissional do hospital Albert Einstein é defensora do medicamento “hidroxocloroquina”, que segundo estudos não traz eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19 nem é recomendado por órgãos mundiais para o tratamento desta doença. A médica também se equivocou em outras respostas na CPI, diante de perguntas de seus pares que estão senadores, o que não diminui seus méritos como oncologista, apenas mostra seu limite de conhecimento. Assim, como todo profissional com saber compartimentado, que se restrinja, então, a atuar na esfera que domina, a Oncologia. Qualquer passo além disso pode contaminar as demais áreas do conhecimento e os danos são irreversíveis. Serão verdadeiros Frankensteins científicos.  E tudo que se ingere se transforma em resíduo…

Enfim, de uma maneira bem simples, o filósofo Descartes, a seu tempo, deu origem à fragmentação do conhecimento, o que teve seus benefícios; o pensador Edgar Morin, séculos depois, propõe o movimento contrário de unificação dos saberes e principalmente o estudo do que há entre uma coisa e outra. Esse movimento proposto por Morin se faz necessário para evitar contradições e danos que temos no mundo pós-moderno. Prejuízos que vão desde a não conhecer todos os sabores que os diferentes cortes de diferentes carnes podem nos oferecer por estarmos condicionados a consumir sempre do mesmo, ou estarmos inseridos a um universo de informações desconexas e às vezes vazias de significado. Ou, pior, criar um universo de desinformações sustentadas em títulos e rótulos que as redes sociais permitem perpetuar em tempo recorde, sem a devida investigação. É o “nugget” do processo. Ou a merda.

 

 

 

 

 

Elder de Santis é professor e mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba.

One thought on “A parte, o todo e o produto final

  1. Parabéns Elder pela reflexão. Sim, a medicina está a cada nova descoberta, que nos dias de hoje acontecem em velocidade recorde, mais fragmentada. Em breve teremos ortopedistas que operam somente a mão direita. Kkk Gde abç

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