Este artigo foi imaginado para falar sobre “A noite”, de Elie Wiesel (Editora Sextante, 2021). Livro de Elie, sobre sua noite interminável. Mas chegaram as notícias, as fotos dos idosos e crianças Yanomami, noites de centenas de anos. De 2019 a 2022 as noites tornaram-se ainda piores, mais garimpo, mais ganância, mais mercúrio, menos proteção, menos saúde, muito, muito menos humanidade.
Não tenho condições de imaginar as dores, só aproximar-me dos relatos, das imagens. Meu sufoco – que não mata – é pela angústia, não pelo gás carbônico expelido pelos caminhões para sufocar os prisioneiros nos campos de extermínio nazista (depois substituído pelo gás Zyklon B, para aumentar a eficiência do extermínio). Minha náusea, tremor, calafrio, tampouco se devem à malária, é pelo que estamos fazendo com nossos povos ancestrais, com as “minorias”, os “diferentes”. O errado é sempre o outro. Não é o meu racismo o problema, é a cor da sua pele. Não é a minha intolerância, é a sua crença religiosa que é “demoníaca”. E assim sigo enumerando e me proclamando entre os “melhores”, claro.
Preciso voltar a Elie e sua noite interminável. A postagem que seria de um vereador local, banalizando analogias nazistas – nosso artigo no último 20/01 neste matutino – e a homenagem às vítimas do nazismo no Dia Internacional da Memória do Holocausto, 27 de Janeiro, data da libertação de Auschwitz-Birkenau, me levam a Elie. É preciso voltar às vítimas do nazismo, não esquecê-las, mas também tentar entender o que aconteceu e que não deveria ter acontecido. Vigiar as semelhanças na linguagem, a estética e violência nos nossos dias, nosso país – já temos vítimas demais. O que está acontecendo conosco e que não deveria acontecer.
É preciso falar sobre Elie, sobre milhões de “Elies”, mas individualmente. Se possível, reconstituindo minimamente a partir de suas memórias. Memórias dos que sobreviveram e conseguiram contar sobre o horror. Na voz de Elie: “o esquecimento significaria perigo e insulto. Esquecer os mortos seria matá-los pela segunda vez. E muito embora, com exceção dos assassinos e seus cúmplices, ninguém seja responsável por sua primeira morte, todos o somos pela segunda” (obra citada, página 18). Não os matemos na estudada banalização das postagens, não os matemos na insensibilidade dos milhões, é preciso olhá-los um a um. Assim também com nossos povos ancestrais, nossas “minorias”, banalizadas, ignoradas.
Preciso olhar para cada um, não me deixar insensibilizar pelos números que se avolumam, foi assim recentemente no auge da pandemia. Os milhares por dia começam a “fazer parte da paisagem”. Lembrar, como ensinou Homero na Ilíada, há cerca de 2700 anos, que a guerra não se resume ao número de mortos. Que cada um deixou uma família, pai e mãe, esposa filhos. Quem cuidará deles na viuvez, na orfandade? Quem dará repouso aos pais quando chegar a hora? Elie chegou ao campo com os pais e a irmã mais nova, tinha 15 anos. Em Auschwitz, onde estava no dia da libertação, terá 16. Na noite do dia de chegada ao campo, a primeira, o cheiro de carne queimada, os rolos de fumaça saindo pela chaminé. Sua mãe e a irmãzinha: “uma menininha judia linda e comportada, de cabelos dourados e sorriso triste…” estavam naqueles rolos de fumaça, o início da noite interminável.
Daí em diante Elie tentará cuidar e sobreviver com o pai. Não tenho condições de reproduzir aqui o que virá e nem tenho esse direito. Há que ouvir sua voz: “A noite”. Não esquecer, rebater a intencional banalização das comparações nazistas, é parte do que podemos fazer pela memória das vítimas e para que não nos desumanizemos.
E que nos sirva de lição para que nunca precisemos ter um dia de homenagem aos povos originários, para lembrar que tentamos destruí-los também. Ou será que já precisamos?
Descanse em paz Elie, descansem em paz “Elies”.
Sergio Oliveira Moraes, físico, professor aposentado ESALQ/USP.
Excelente reflexões.
Muito triste perceber que a história se repete e que o ser humano pode ser tao perverso quanto os nazistas. Não era um unico Hitler mas muitos apoiadores, multiplicando a maldade e a desumanidade. O que estamos fazendo com nossos povos originários tem muitas similaridades com o nazismo, no quesito extermínio, maldade e desumanidade.