Em roda, pessoas de diferentes idades, profissões, gêneros, etnias e condições sociais acendiam velas num ambiente semi-iluminado. Uma estudante bastante jovem ajudava uma vereadora a proteger a chama de sua vela do vento que soprava insistente. No colo da mãe, uma bebezinha olhava a bandeira de um movimento de luta pela vida das mulheres deitada sobre o chão de cimento. Uma senhora a observava, sorrindo.
Era noite de terça-feira e a atmosfera se diferenciava da costumeira, quando normalmente outros espaços eram utilizados naquela instituição de ensino. Em um meio de ciência e tecnologia, em que a presença masculina prevalece, no Instituto Federal de Piracicaba aquela noite o protagonismo foi das mulheres. O local, sem paredes, acolheu uma vigília pela vida das mulheres e em memória a todas que estão ou estiveram em situação de violência.
Entre os inúmeros e absurdos casos de feminicídio no Brasil, foi lembrada de maneira particular a morte brutal de Dona Eliana de Jesus Silva Ribeiro, a Dona Lili, assassinada por seu companheiro em 18 de agosto deste ano, em Piracicaba. Suas filhas faziam parte do grupo que se reuniu para reflexão e discussão sobre uma questão ainda negligenciada na cidade, apesar de nela haver casos cotidianos de violência contra a mulher. A advogada e ex-vereadora Rai de Almeida ressaltou que a violência contra a mulher está aumentando sobremaneira no país. “No Brasil, que está entre os cinco países com maior índice de violência contra mulheres, as meninas já nascem fadadas a terem a vida marcada pelo desrespeito. Em nosso país meninas em tenra idade são vítimas de maus tratos e estupro”, afirmou Rai.
A ação foi fruto da parceria entre o curso de Pós-Graduação em Educação em Direitos Humanos do IFSP, do coletivo Marias de Luta, Promotoras Legais Populares de Piracicaba – PLP, Coletivo Maria Bonita – IFSP Piracicaba e a Procuradoria Especial da Mulher – representando a Rede de Atendimento à Mulher de Piracicaba. O tom de conversa, a presença de pessoas tão diversas, a oportunidade de participação dada a todos e a disposição em ciranda refletiam a maneira de organizar a atividade, a colaboração entre Universidade, movimentos sociais e o poder público.
Coordenador do curso de Pós-Graduação do IFSP e organizador da vigília, o professor Adelino de Oliveira contou que quando começaram a pensar a atividade, procuraram sair do formato acadêmico. Apesar de ser realizada numa universidade, a ideia não era compor uma mesa para trazer e debater dados. O objetivo foi evidenciar o combate à violência contra a mulher a partir de uma outra lógica cultural, que passa, inclusive, pela nossa sensibilidade. O professor salientou o horror da banalização do mal, da violência que ocorre ao nosso lado e parece nem nos afetar. “Temos tantos relatos de violência contra as mulheres, é preciso um grito no sentido de dar um basta para esse ciclo de violência. Essa violência que não é casual, não é inevitável, é fruto de uma política que produz a morte”, afirmou Adelino. A declaração da presidenta do PT – Piracicaba, Penéloti Mendes, captou esse olhar proposto pela vigília. “A motivação para se participar de ações como essa vigília é a mistura de diversos sentimentos, vontade de justiça, desamparo, revolta, força, acalento, união. Num contexto de violência em que as mulheres sentem-se desamparadas pelo poder público, ações como essa fortalecem a luta. Nós mulheres nos sentimos mais fortes, nos sabemos unidas e não sozinhas”, afirmou Penéloti.
Refletir, se posicionar e ocupar os espaços para que se tenha voz nas decisões é o que a vereadora Nancy Thame colocou como postura importante na luta pela vida das mulheres. Para ela a violência contra a mulher é algo estrutural, histórico, cultural. “A gente vence com momentos como esse em que temos aprendizado e força conjunta, mas é preciso que a gente ocupe espaços de poder e decisão”, reiterou Nancy. A vereadora contou que no Brasil as mulheres são 12% entre vereadores, 13% entre prefeitos, 15% entre deputados federais e 10% no senado, o que considerou um número muito pequeno.Em Piracicaba entre as 23 cadeiras de vereadores, somente 2 são ocupadas por mulheres.
Discutido o atendimento às mulheres em situação de violência, evidenciou-se que Piracicaba não conta com políticas públicas suficientes para o bem estar e a segurança da mulher. Não há no município sequer um canal de denúncia rápido e eficiente. Destacou-se que a estrutura da delegacia da mulher ainda é precária, ela não funciona à noite ou nos finais de semana que é justamente quando ocorre grande parte dos casos. A mulher, então, é obrigada a procurar uma delegacia comum, onde é tratada como a causadora da violência que sofreu.
A mobilização veio ainda no sentido de se pressionar o serviço público. “Enquanto não tivermos uma política pública que combata a violência, uma estrutura que atenda as mulheres e que propicie condições para que elas rompam com a situação de violência em que vivem, continuarão a ser humilhadas, discriminadas, violentadas e o poder público inerte sobre a questão”, afirmou Rai. Ela declarou ainda que numa reunião sobre o orçamento público uma emenda que tratava da criação de uma casa de acolhimento para mulheres em situação de violência foi rejeitada pelos vereadores e seu mérito nem chegou a ser discutido. “Embora sejamos mais de 50 da população, no serviço público a violência contra as mulheres é vista como uma questão menor”, denunciou a ex-vereadora.
Em Piracicaba, apesar da violência contra mulher ser cotidiana, não há também dados organizados sobre ela. As piracicabanas, assim como outras mulheres, muitas vezes nem reconhecem o sofrimento por que passam como agressão. Vivem situações corriqueiras que não identificam como violência. A opressão pelo controle, o sentimento de posse são extremamente naturalizados, contou a advogada Daniela Negri. Mesmo a violência sexual pode passar como algo natural. “Coação que nem sempre envolve violência física. Muitas vezes nem passa pela cabeça da mulher que a vontade dela também deva ser considerada, a relação sexual é colocada como um direito do homem dentro do relacionamento afetivo”, relata Daniela.
Odahra Fernandes, professora de Geografia e aluna do curso de Pós-Graduação Educação em Direitos Humanos – IFSP afirmou: “é importante trazer esse assunto à discussão e não deixar em baixo dos panos, como normalmente se faz”. A violência contra a mulher ainda não recebe a atenção necessária. Para Odahra, o tema é pouco discutido nas faculdades ligadas à tecnologia.
Segundo o professor Huyrá de Araujo, no ambiente de estudos ligados à ciência e tecnologia a presença feminina ainda é menor em número se comparada à presença masculina. Os homens ainda dominam o meio científico tecnológico, então em um instituto de ciência e tecnologia, como é o Instituto Federal, ações como essa vigília provocam a comunidade a entender que a discussão sobre a violência contra a mulher não perpassa só o departamento de humanas ou o ambiente religioso, é uma discussão pertinente a todas as dimensões. “É impossível que ocupemos o lugar de fala enquanto homens, que queiramos determinar de que forma os processos, os eventos e discussões serão encaminhados, mas em hipótese alguma podemos nos ausentar. Essa luta também é nossa, é uma luta que é de todos e aos homens cabe a reflexão antes de tudo”, disse Huyrá. “Não podemos deixar passar em brancas nuvens uma situação que deve nos tocar. Porque o que está em jogo é nossa humanidade”, completa o professor Adelino.
Durante a vigília foram apontadas diversas questões relativas à violência contra a mulher, discutidos os motivos pelos quais a mulher muitas vezes não consegue romper com o ciclo de violência sofrida ou se desvencilhar de um relacionamento abusivo. Ainda que tenham sido abordados pontos relevantes para a melhoria do atendimento às mulheres em situação de violência, a necessidade de políticas públicas efetivas, que tenham sido relembradas brutalidades e mortes, o ato foi marcado também pela beleza e poesia. Pela beleza da força feminina, do poder de transformar dor, vergonha, humilhação, culpa e medo em luta. Pela poesia do ambiente semi-iluminado, das mãos que protegiam o fogo das velas, como se cada chama fosse a vida de uma mulher.
Glória Cavaggioni é jornalista.
Essa vigília põe luz sobre a violência acomete e ceifa a vida das mulheres. O nosso grito é por #Nenhuma a menos! Parabéns as organizadoras e organizadores.