1964: entre falsas versões, o passado a ser enfrentado

1964: entre falsas versões, o passado a ser enfrentado

Não. Não é preciso repetir a síntese do que foi o golpe de 1964. Militares tomando o poder, depondo um governo eleito, garantindo que era preciso acabar com a ameaça comunista. Durante anos, numa escalada progressiva, vieram as cassações, a censura, as prisões ilegais, as torturas, os desaparecimentos, a tentativa de calar toda e qualquer oposição.

60 anos passados, ainda permanece quase que um mistério o que ocorreu para além dos grandes centros do país, onde parte significativa do que ocorreu já está documentado, registrado, analisado. Mas as cidades do interior continuam em seu silêncio – silêncio para se preservar do medo, para evitar pressões, para não enfrentar a família, para manter as elites históricas isentas de qualquer culpa, por não entender realmente o que era a ditadura que se fortaleceu pelos boatos e, por vezes, receber seus mortos em caixões lacrados para deles se despedirem em enterros praticamente sigilosos.

A iniciativa de se publicar um livro sobre o que ocorrera a partir de 64 também em Piracicaba é parte desta história de interesses, de conveniências, provavelmente de alguns medos também. Somos um grupo de pesquisadores e interessados no tema – que envolve jornalistas, religiosos e advogados entre outros – que ainda em 2013 iniciou conversações com o Instituto Histórico e Geográfico local para uma parceria que viabilizasse a edição de um livro para ser lançado nos 50 anos do golpe. Conversas detalhadas, compromissos firmados e, então, de repente, quando o próprio IHGP já contratara um diagramador para os trabalhos de edição, vem o que ninguém esperava: a instituição desistiu da publicação! Sem explicações, sem detalhes, sem maiores justificativas. Uma futura publicação a qual sua diretoria tivera acesso do conteúdo integralmente.

A pergunta que até hoje nos fazemos, depois de vencer esse absurdo – o livro teve o aval da Editora UNIMEP e recebeu seu selo, se pagou através de um financiamento coletivo ainda pouco comum à época, com venda antecipada dos exemplares; tornou-se pauta nacional pela censura do IHGP; esgotou-se rapidamente depois de inclusive ser enviado a todas as escolas e universidades da cidade – é o que incomodou tanto a ponto de o Instituto Histórico cancelar o acordo para publicação. A quem, realmente, o livro a ser então publicado incomodou? E mais: por que incomodou tanto se tudo o que se encontra em seus capítulos é documentado, constante em processos oficiais, tema de teses aprovadas em instituições de ensino superior, passível de consulta até mesmo em arquivos públicos? Simplesmente porque até então nada daquilo era público?

Passados 10 anos, o que aconteceu com o livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior” é o exemplo mais explícito, claro, de como é possível se tentar recontar a história conforme os interesses de quem está ou detém algum tipo de poder. Especialmente em cidades do interior, onde as dependências são mais explícitas, onde se conhece todo mundo, onde a política do silêncio e da intimidação também são uma forma de preservar versões que mantenham mitos por narrativas que os isentaram de qualquer crítica ao longo das últimas décadas. Aconteceu aqui, mas certamente se repetiu em outras dezenas de localidades, onde parece que o golpe de 64 não aconteceu e nem deixou resquícios – por conta de um silêncio avassalador.

É preciso estudar essas comunidades. Desmascarar inverdades. Esclarecer novas gerações para que elas entendam melhor os espaços em que cresceram. Incentivar os com mais de 60 a contarem, finalmente, suas histórias, de suas famílias, de seus vizinhos. De gente que eles amaram. Ou que odiaram. Ou contra quem reagiram, mesmo sujeitos a seus desmandos. Histórias de gente comum, mas também de trabalhadores, de professores, de estudantes, de religiosos, de funcionários públicos, de escritores, de políticos, entre tantos outros

Essa é a base da parceria que firmamos com o Diário do Engenho para produzir esta série. Antes de tudo porque é preciso que novas gerações entendam o que foi o golpe 60 anos atrás. Que ele tirou muito de qualquer cidadão, inclusive o seu direito de votar e escolher. E também porque é preciso que os mais jovens percebam que de fato o golpe afetou a vida da cidade onde vivem.

A série, visando também oferecer subsídios a professores que queiram enfrentar a urgente necessidade de que o golpe de 64 volte a ser estudado em sala de aula, além de análises e reflexões surge para incentivar que novas histórias venham à tona, que os papéis de heróis, vítimas e algozes fiquem mais claros. Sem entender o passado é difícil imaginar um país definido pela justiça e pela democracia.

Especial e exclusiva, a série terá duração de ao menos 3 semanas, em publicações diárias que poderão ser acompanhadas acessando-se https://diariodoengenho.com.br/

Já o download integral do livro “Piracicaba, 1964”, pode ser feito gratuitamente acessando-se http://editora.metodista.br/publicacoes/piracicaba-1964

 


Beatriz Vicentini é jornalista e coordenadora/editora do livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior”. Em parceria com o Diário do Engenho, editora esta série para o site.

 

 

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