Em outubro de 2023, Italo Calvino teria completado cem anos – dos duzentos que precisaria ter vivido para se aproximar do esgotamento de suas criativas contribuições ao universo da literatura e do pensamento. Em seu O caminho de San Giovanni se conhece um pouco mais do ser humano por trás do revolucionário escritor apreciado em todo o mundo – trata-se da reunião de cinco deliciosos textos, em tom ensaístico, de fundo biográfico, esparsamente publicados nos anos 1960-70.
O texto que dá nome e início ao livro relata e reflete sobre a relação do autor com sua família, especialmente com o pai, vivendo em área rural da então pequena San Remo. “Vocês hão de compreender quanto nossos caminhos divergiam, o de meu pai e meu.” (p. 21), ele dirá, mostrando que sempre procurava descer para a cidade próxima, enquanto seu velho pai preferia subir para as plantações que cultivava, esforçando-se para seduzir os filhos para se ligarem à terra. O relato é pungente e transporta o leitor para o lugar e para as relações da infância e adolescência de Calvino. O segundo texto, Autobiografia de um expectador, prossegue revelando o dia a dia do jovem futuro escritor no seu esforço para “fugir do lugar” que o sufocava, frequentando assiduamente as salas de cinema, às vezes às escondidas da família. Mas o texto vai além, constituindo-se numa reflexão sobre os filmes americanos, franceses e italianos dos anos 1930, culminando com um posicionamento a respeito da obra de Fellini.
Em seguida, uma passagem marcante da vida de Calvino – seus dias de resistência ao fascismo como partigiano – é evocada em Lembrança de uma batalha. A memória se revela falha, titubeante – em passos trôpegos, as palavras vão se alinhando e revelando acontecimentos e sentimentos face às convicções libertárias e ao medo da morte estúpida, em combate. Mas a dúvida não desaparece em nenhum momento: “Não sei se estou destruindo ou salvando o passado, o passado oculto naquele vilarejo sitiado.” (p. 72)
Cardù, o do “sorriso descarado e tranquilo”, extremamente audaz, não sobrevive ao combate em Baiardo, ao contrário de Calvino que, mais tarde, residirá com a família em Paris. É, entre outras coisas, das relações nesta nova família, por ele constituída e não herdada (como a de San Remo), que trata La poubelle agréée, ou seja, a lixeira padrão aprovada para uso em cidades francesas. Com requinte sociológico e humor fino, o Calvino “doméstico” explica minuciosamente como procede para o descarte do lixo caseiro que lhe compete na divisão das tarefas diárias da casa. Dessa tarefa prosaica – sempre fugindo do quotidiano, como quando divagava ao carregar cestos com frutas e verduras para ajudar o pai em San Giovanni – Calvino deriva para reflexões a respeito da vida urbana, da civilidade e do contrato social, da mudança nas relações entre homem e mulher quando se procura dividir as tarefas domésticas equitativamente etc.: da cozinha para o mundo e deste para aquela, de volta, inquietudes, com muito bom humor.
Do opaco finaliza a coletânea. Que o dito aqui sobre os textos anteriores seja suficiente para motivar o potencial futuro leitor a abrir as páginas de O caminho de San Giovanni,e, além de descobrir do que trata o texto final, saborear com calma e plenitude o conteúdo filosófico-literário dos demais.
[Referência: CALVINO, Italo. O caminho de San Giovanni. Tradução de Roberta Barni (São Paulo: Companhia das Letras, 2000, 119 p.)]
Valdemir Pires é economista e escritor.