À Clarice Lispector eu agradeço os sentimentos gerados ao ler e reler o conto “A menor mulher do mundo”. Marcel Pretre, pesquisador, retira do coração do Congo a menor mulher do mundo e a leva como um troféu para a civilização. Para ela, batizada por ele de Pequena Flor, ser caçada e não ser devorada, já era o suficiente. Como é da arte de Lispector, seus textos são ricos em reflexões sobre a vida, e a presença de Pequena Flor na civilização desperta algumas reflexões que destaco: “E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho”.
A Arnaldo Jabor eu agradeço a crítica feita ao filme “Segredo de Brokeback Mountain”, de 2005, dirigido por Ang Lee. A película de Lee desenvolve o conflito de dois vaqueiros que passam uma temporada em uma montanha, tomando conta de um rebanho. Entre eles, surge o amor. Isso: o amor, sentimento universal. E Jabor, em sua análise, chama atenção para o que causa estranhamento no filme: a bela história de amor que foi às telas, vivida por dois homens, dois vaqueiros, longe de todos os estereótipos já então mostrados no cinema. O público torce para que o amor vença, e esquece que são dois vaqueiros. Porque o amor está acima de quaisquer modelos.
E por que isso agora? Não é porque em 28 de junho de 1969 houve manifestação violenta em determinado bairro de Manhattan, em Nova York, nos Estados Unidos, que desencadeou desde então protestos pela libertação gay e à luta pelos direitos LGBT no país e no mundo. Não. Não é só por isso. É pedir cuidado por algo maior: o amor, sentimento universal. No Congo, onde Pequena Flor foi capturada por Marcel Pretre, ser capturada seria ser sinônimo de ser devorada… “ela que não estava sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo de toda uma vida. ” E Pequena Flor não foi devorada. E isso era o amor para ela… não ser devorada…
Não ser devorado…. como é um jovem não ser devorado por seus próprios sentimentos quando seus hormônios pedem experiências, toques e sensações, e todo um contexto ao seu redor fala que não pode, que não deve? Quando seu jeito de andar é ridicularizado na escola, seu jeito de falar “chiclete” vira meme, seus pais o ameaçam expulsar de casa e lhe negam apoio e atenção? A quem essa pessoa recorre para não ser devorada por seus sentimentos ou momentos da violência que a falta de amor pode levar? (É um problema do outro?).
Não ser devorado… aquele adulto que passou pela adolescência, venceu as barreiras mais óbvias, se assumiu homossexual, tornou-se um profissional bem-sucedido, mas que na hora que briga com seu namorado, naquele momento que é comum chorar no ombro do pai, irmão ou mãe se vê sozinho – porque percebe nas relações familiares que a luta para a sobrevivência afetiva afastou os laços mais importantes e fortes. Existem, mas não significam. (É um problema do outro?).
Não ser devorado… aquele adulto que se fechou no armário da vida. Ou o que procura uma profissão ou estilo de vida que possa sufocar o que a sociedade por si só já mata. Ou o que se casa, tem filhos, tem uma vida que não é a sua. Ambos tentam desempenhar as convenções sociais de acordo com o seu corpo físico de homem ou de mulher na tentativa de superarem aquilo que está acima, que são os pedidos da alma. Vivem, mas são devorados pela infelicidade, quando não são a causa da infelicidade de outros. (É um problema do outro?).
Não ser devorado… não cabe aqui, mas é bom pontuar os inúmeros crimes homofóbicos – de cujas vítimas não são só tiradas as vidas como antes disso sofrem as mais horrendas torturas. É também um problema do outro.
Às vezes, não ser devorado parece não ser o suficiente. Porque continuar vivo exige mais que amar o anel que brilha, a bota de couro, como amava a Pequena Flor por não ter sido devorada por seu capturador. Poder viver um amor sem os segredos de “Brokeback Mountain” justifica a existência do “orgulho gay” lembrado neste 28 de junho. Não só o amor, como também o respeito e a dignidade da pessoa humana. Invoco novamente uma frase da Pequena Flor: “Há um velho equívoco sobre a palavra amor”. Principalmente quando o meu jeito de amar é diferente do seu.
Elder de Santis é professor e mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba.
Parabéns!! Muito bom lembrar que há diferentes jeitos de amar.
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Parabéns Elder! Triste constatar o quanto a intolerância está acima do amor pelo próximo.