A Cor da Consciência

A Cor da Consciência

Antes, luto com garras e dentes

Pelos e pele, carne e suor

Pela custódia da minha

existência.

– João Tolentino (Resistência, em “Olhos Suplicantes“).

África é um continente que vai
gradativamente começar a falar, a
contribuir com o mundo. E o mundo tem
tanto para aprender com África.
Cont Mhlanga, Afreaka: África sem estereótipos

 

É sempre complicado afirmar que a consciência tenha alguma cor. O pensador Sigmund Freud – que primeiro vislumbrou descrever a estrutura da mente humana – não chegou, até onde sei, a indicar o tom da consciência. Carl Gustav Jung, mesmo com a fascinante concepção de arquétipos e do inconsciente coletivo, também não avançou a tal ponto. Apesar disso, alguns gostam de pensar na consciência como verde, talvez por uma inspiração mais ecológica. Tornou-se referência se indicar a cor branca como símbolo representativo de paz, de rendição. O arco-íris, com sua força e beleza, passou a representar a abertura para a diversidade como caminho. O vermelho, fazendo menção a uma consciência de luta e de resistência, no sangue de tantos mártires que morreram em nome de um ideal de justiça e liberdade. A percepção de uma consciência púrpura também se revela bem sugestiva. Mas hoje somos convidados a pensar a consciência como negra, como preta. Tantas representações e tonalidades não deixam de contemplarem dimensões profundamente arquetípicas.

É preciso então indagar o que tal perspectiva representa. O que significa o dia da consciência negra? A consciência pode ter cor? É importante advertir que a aproximação a essa temática que aqui propomos seguirá uma abordagem mais factual, portanto, menos conceitual. Recentemente tenho me deparado com os mais inusitados comentários, a expressarem um determinado grau de preconceito latente, pronto a reverberar ideais que, definitivamente, além de grosseiras, são também desagregadoras e segregacionistas. Apenas a título de ilustração, outro dia, em um café, uma personalidade política da cidade de Piracicaba, com certo cinismo dizia: “Agora tem até o feriado dos pretos. Onde vamos chegar com esse povo que não quer trabalhar. Feriado dos pretos, onde já se viu?!” E numa famosa rádio FM da cidade, determinado radialista maldosamente disse: “E está chegando o feriado do Lula.” Não terminou seu pensamento, pois foi subitamente repreendido por seu companheiro de bancada: “Não fale esse nome aqui”. Mas ele insistiu um pouco mais, afirmando: “Mas eu não vou falar bem!” Como se falar mal permitido fosse. Fechando essas narrativas há o episódio – nem tão episódico assim – do arrogante e não menos boçal jornalista que vociferou: “É coisa de preto. Só pode ser coisa de preto!” Expressões que acabam por desnudar um grotesco preconceito enrustido, velado. Em todo caso, esses três relatos talvez sejam representativos de um olhar, de um imaginário social, delineado por limitadas compreensões acerca da histórica e da própria identidade do povo brasileiro, quiça da humanidade.

O dia da consciência negra é, sobretudo, um marco referencial de memória, luta e resistência. A data configura-se como um tácito convite, um grito alucinante, buscando recompor, em cada um de nós, a dimensão sagrada, íntegra de uma humanidade decaída, perdida de si mesma, em decorrência da cisão doentia provocada pelas diversas práticas de preconceito, consolidadas ao longo da história.

É preciso se compreender a memória em três aspectos fundamentais. Primeiro como lembrança de uma história demarcada pela violência absurda da escravidão, evento que não pode cair nos véus do esquecimento, para que não seja nunca mais repetido. Memória também como via para se reconhecer uma identidade nacional que se intentou obliterar. Memória ainda como perspectiva basilar para se recuperar a originalidade, a beleza e a intensidade de uma história perdida, de uma cultura negada. Há sem dúvida uma constituição arquetípica, fruto de uma sabedoria mais que milenar, a compor elementos profundos do inconsciente coletivo humano. A ausência de tais memórias significa, não obstante, a perdição da própria noção e condição de humanidade.

A dimensão da luta que se conflagra como um campo em aberto, dinamizado por tantas situações históricas de opressão e exploração, que perversamente persistem, não dando sinais de serem suplantadas. Um dia que emerge impávido, sob o signo de lutas em muitas frentes, como no campo da conquista de direitos, do reconhecimento da igualdade, da afirmação identitária, da dignidade vilipendiada, das múltiplas oportunidades cinicamente negadas. A luta implacável que coloca em questão o lugar existencial de um povo, de uma etnia, de uma cultura.

Um dia também de firme e inabalável resistência, porque a memória tem sido, sub-repticiamente, silenciada e as lutas cotidianas continuam árduas. A resistência como um brado, a retumbar o querígma: a vida pode ser bem mais. A resistência que traz forças para se erguer a cabeça, não se entregar nunca e existencialmente seguir adiante, contra todas as expressões de preconceito, em um gesto cheio e pleno de dignidade.

Celebrar o dia da consciência negra consiste em um convite à metanóia, uma profunda mudança de mentalidade, de maneira a suplantar todas as expressões de ódio étnico e preconceito. A consciência passa a ter cor, quando se toma partido em prol de uma causa que é justa e necessária, reconhecendo as muitas dívidas sociais. É fundamental ressalta, para que não sobre incertezas ou mesmo dúvidas, que o dia da consciência negra não é uma data voltada tão somente para comunidades de ascendência africana. O apelo é para todos que se reconhecem como partícipes do longo caminhar da humanidade. Neste ponto, a celebração do dia da consciência negra pode representar um movimento de abertura a um caminho essencial de reencontro com a própria alma brasileira. A consciência da cor talvez seja a reconciliação com quem realmente somos enquanto povo, recuperando uma ancestralidade que constrói novas possibilidades econômicas, científicas, culturais, religiosas e existenciais.

 


 

 

 

 

 

Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal campus Piracicaba.

4 thoughts on “A Cor da Consciência

  1. O que é o senso comum se não a repetição irrefletidamente de ideias que não são as nossas?
    Obrigado Prof. Adelino pela sua contribuição para o bom entendimento do feriado do dia de hoje.

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