Vamos combinar?

Impressionista.

“Uma ocasião,

meu pai pintou a casa toda

de alaranjado brilhante.

Por muito tempo moramos numa casa,

como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.”

(Adélia Prado)

Penso que ainda podemos falar dos presentes e mimos que recebemos no Natal, dos nossos melhores votos para o novo ano, recebidos e retribuídos. Afinal, ainda ouço de muitas pessoas: “Feliz Ano Novo.” Gosto . Palavras que chegam com boas vibrações.

O poema acima de Adélia Prado – para mim, a melhor entre as melhores, a que mais me toca, que me incomoda, que é solidária aos meus sentimentos, ao meu jeito de olhar a vida – está em Bagagem, seu primeiro livro, tão bem recomendado por Drummond. Ganhei de Natal. Gostosos momentos ele já me proporcionou.

O poema me reporta ao amanhecer de um ano novo, em lindos tons de alaranjado brilhante,  permanecendo nessa festa de cor por muito tempo, por todo um ano, até que novas esperanças preencham nossa alma.  Sendo possível, nessa data juntamos famílias, amigos, fazemos nossas orações, cantamos, dançamos, não esquecendo as lentilhas, a romã, o presentinho para o “santo…” E, claro, vestimos alguma peça nova de roupa para trazer sorte, com a cor adequada ao pedido. Dependendo da peça, desejos impublicáveis…

A festa acaba e o ano inicia com as notícias de acontecimentos que, como esperávamos, tinham ficado para trás. As chuvas provocam inundações, deslizamentos de terra, desalojam pessoas. As chacinas, as balas perdidas (perdidas?), os estupros, coletivos ou não, as guerras, a fome, as doenças, a saúde pública descuidada. Políticos sendo reempossados, para nosso assombro.

E os nossos pedidos, os nossos desejos, muitos direcionados até ao bem estar do planeta, como ficam? Devemos nos entregar à desesperança?

Isso me lembra  Chico e sua Roda Viva:  “Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu; a gente estancou de repente, ou foi o mundo então que cresceu…A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva, e carrega o destino pra lá…”.

Nesses dias meio parados consigo assistir filmes com certa calma, não sempre deixados pelo meio como quando assumo os compromissos e horários depois das férias. Fiquei surpresa ao me ver  diante de um filme de guerra. Há muito evito esses temas,   em geral sem mais novidades além da insuportável violência. Na verdade, meu interesse talvez tenha sido despertado por se tratar de uma história de dois fotojornalistas dentro de uma guerra. Amo jornalismo e fotografia. Em mãos sensíveis e competentes, um acontecimento banal pode se trans formar em uma obra de arte. Boa fotografia, penso, é obra de arte. O filme se chama “Testemunhas de uma guerra” e traz o ótimo Colin Farrell como um dos fotógrafos e  a lenda Cristopher Lee – nunca esquecido pelo seu incrível Conde Drácula – como um psiquiatra que cuida da alma de Mark (personagem de Colin), tão mal tratada pelas imagens e situações – tristes, inacreditáveis – que foi buscar e vivenciou na guerra do Curdistão. 

Ainda no embalo dos bons sentimentos da passagem do ano, refleti sobre o porque de as guerras existirem (e há muitas acontecendo), a quem elas servem.  Não fica difícil pensar que, além da necessidade insana de poder, a indústria de armas arruma motivos e as patrocina. Refleti sobre o porque da vida humana  ser  tão desvalorizada! Aí incluo a criança que foi baleada na cabeça minutos após ganhar sua boneca de Natal, e morreu porque o médico não compareceu ao plantão. Incluo os mortos nas chacinas, a assustadora violência urbana, os desabrigados por causa das catástrofes naturais, os que, na maioria, não tendo acesso a uma boa educação  e a condições sociais dignas, se entregam ao crime e às drogas. Incluo também a impunidade que leva à quebra dos mais valorosos e sutis vínculos sociais. Assuntos complexos, com infinitas e diferenciadas causas, mas que incomodam e angustiam  qualquer pessoa com um mínimo de conscientização e envolvimento social. Situações que se repetem com intensidade cada vez maior.

Quantos não puderam festejar a entrada do novo ano com os bonitos tons    alaranjados, brilhantes,  trazidos com a esperança de um feliz ano novo!

O drama de Mark e a abordagem do psiquiatra, no filme, me chamaram a atenção. Quando perguntado se poderia ajudar Mark, a resposta do psiquiatra foi rápida: “ É claro. Posso ajudar qualquer um, porque não ele!”.  Mais que isso, é um profissional cuja linha de trabalho é polêmica por ter  trabalhado na recuperação de criminosos da guerra civil espanhola.

O resgate da esperança para os agredidos. O resgate da dignidade em sua condição humana para agredidos e agressores.

Sem isso, penso, não teremos volta à paz e a uma razoável estabilidade e tranquilidade sociais.

Não me alongo mais sobre o filme. Deixo minha sugestão para que o assistam.

Sou uma pessoa, por natureza, sempre bem servida de esperança, e que acredita que a humanidade deveria se comportar como  uma grande família. Credulidade demais? Ingenuidade?  Clichê? Não me importam os rótulos. Não gosto deles. Não aceito a desesperança. Acredito na dignidade da condição humana.

Erros cometemos. E quantos! No entanto, creio que cada um, dentro de suas possibilidades e se respeitando acima de tudo, pode, no seu círculo familiar, no seu ambiente de trabalho, no meio social em que vive, atuar para que a harmonia e o respeito imperem nos relacionamentos . Juntando a isso boas vibrações, nutridas por bons votos, estou certa que cada um, como num trabalho de formiguinhas, pode trabalhar pela paz no seu meio familiar e social. E no mundo.

Assim volto aos nossos bons votos da passagem de ano. Esperança sempre!

Acabo de escutar Cassia Eller em Por enquanto” de Renato Russo, o saudoso e grande poeta de nossa música – “Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar Que tudo era pra sempre Sem saber que o pra sempre, Sempre acaba”.

Podemos mudar isso? Nosso esforço para que nossos melhores votos e intenções, e nosso trabalho a favor de um mundo para sempre melhor nunca  acabem é um bom caminho, uma excelente opção.

Vamos combinar?

Termino essas reflexões com Adélia – Toada

“Cantiga triste,

pode com ela é quem não perdeu a alegria.”

Feliz Ano Novo!

———————–

 

 

 

 

 

Zilma Bandel é bióloga pós-graduada e articulista do Diário do Engenho.

26 thoughts on “Vamos combinar?

  1. Zilma:

    Lindo e profundo texto, palavras fortes expostas como nossas feridas de alma pela constatação de tanta violência urbana. Também me reciclo diariamente, acordo alaranjada e durmo cinza chumbo (diga-se de passagem a cor está na moda). Queria tanto poder tb dormir alaranjada…

    Mas ainda continuo a rodar num carrossel, quando vejo ou ouço algo triste acelero o motor e tento visualizar a beleza da natureza, das viagens, dos amigos, dos familiares. E vamos tocando, ainda com fé em Deus e na humanidade…

    1. Obrigada, Carmem.
      Sua leitura e palavras de elogio me incentivam a prosseguir nessa tarefa que você domina tão bem. São muito importantes para mim.
      Não é fácil escrever sobre o que nos é tão penoso. Tentei e, para dar alguma leveza aos escritos, pedi emprestadas as palavras – que já chegam com sentimento, cor e brilho – de Adélia, Chico …
      Fé em Deus e no ser humano, sempre!
      Esperando um texto sobre sua viagem.
      Abraço com afeto e gratidão.

  2. Zilma, parabéns!
    Lendo seu texto, parece que a gente está de frente prá voce, ouvindo voce dizer tão bem e prazeroso assunto.
    Claro que não vivemos mundo cor de rosa, ou alaranjado mas a esperança um dia terá que ter essas cores.Não é possivel só o moderno “cinza” né.
    Parabéns foi lindo está a sua altura de elegancia e bom gosto.
    bjs miriam

    1. Obrigada, Miriam.
      Fico feliz que tenha lido e gostado do texto.
      Gostaria que a cada manhã, a cada dia, a cada noite tivéssemos a vida enfeitada pelas cores que mais nos agradam na vida, que mais deixam nossa alma aquecida. Todos nós!
      Beijo carinhoso.

  3. Adorei Zilma! Parabéns pelo texto e pela escolha do tema, super oportuno para esse começo de ano que já começou com tons laranjas …. muito lindo!
    Um beijo.

    1. Muito obrigada, Rose.
      Você sempre me apoiando e incentivando na minha (tardia…)nova atividade!
      Para tempos difíceis, alma aquecida pela fé em Deus e no ser humano.
      Temos que ir em frente tentando viver nossos melhores sonhos. Que eles sejam sempre repletos de cor e brilho!
      Beijo carinhoso.

    1. Obrigada, Renata.
      Espero continuar com a aprovação de vocês.
      O cuidado com as ilustrações realmente valoriza o texto.
      É uma marca muito boa e especial do Diário do Engenho.
      Beijo carinhoso.

  4. Zilma, querida,

    realmente o tema escolhido é muito oportuno e você, com sua sensibilidade, expressou muito bem nossos sentimentos: não podemos perder a esperança de um mundo mais justo, mais solidário, mais feliz, em tons laranja! Obrigada pelo seu texto, amiga!

  5. Eu que agradeço, Miriam, por sua leitura e aprovação. São importante incentivo para mim, vindo de uma carinhosa e sólida amizade como a nossa.
    Beijo carinhoso.

  6. Como um texto leve e gostoso de ler pode trazer a realidade, as cores e pinceladas, a literatura, a música e o cinema?
    Palavras entralaçadas e sabiamente costuradas, num retrato poético da esperança renovada.
    Lindo, Zilma, já estou ansiosa pelo próximo.

    1. Querida Tainá.
      Sou muito grata por sua leitura e seu crítico e delicado comentário.
      Iniciante que sou, incentivo é do que mais preciso.
      Esteja sempre bem, com Deus.
      Beijo carinhoso.

  7. Cada vez seus textos me agradam mais,com sua sensibilidade,espiritualidade,esperança,com lições de otimismo.Muito bom que você despertou para essa nova vocação,além das que já possui.Inclusive você mostra ,com suas reflexões,o que sempre a norteou:preocupação com uma sociedade que seja justa,preocupação com a família, amigos e tudo aquilo que exerce um papel preponderante em nossas vidas.Parece-me que a vejo falar:”Dida,não pode ser assim”. Nessa situação atual do nosso país(e do mundo) ,de violências,contradições sociais,desrespeito pelo próximo,você mostra que a esperança deve prevalecer para que atinjamos a paz.Esse mundo cinza,com vários tons,quem sabe,poderá se transformar em um azul celeste,tendendo a adquirir(será?)tons suaves de rosa,ou pelo menos alaranjado.Se sempre a admirei(vc sabe)como bióloga,passo a admirá-la nessa nova “fase”.Parabéns e aguardo o novo texto.Um grande beijo,minha amiga articulista do Diário do Engenho…

    1. Quantas palavras de carinho e incentivo, Dida!
      Sou muito agradecida por tê-la ao me lado nessa tardia atividade de que tanto gosto. Gosto de ler, gosto de escrever. Vou aprendendo aos poucos.
      Esteja sempre bem, em paz, com Deus.
      Beijo carinhoso.

  8. Zilma

    Só hoje estou lendo seu texto.
    Deixo coisas pra traz mas nao esqueço as que realmente guardo no coração,seus textos por exemplo.
    Hoje estou em pouco angustiada e algumas frases suas me tocaram ,essa mescla de música poesia e fala própria unindo o assunto me fez bem.
    bjs

    1. Ana querida.

      Fico feliz por poder me comunicar com o coração das pessoas queridas através dos meus escritos. Pisciana como eu, você sabe o quanto de emoção coloco no que escrevo.
      Espero que esteja bem e assim permaneça, sempre em paz, com Deus.
      Beijo carinhso.

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