Quando escolhemos o nome de “Diário do Engenho” para este espaço virtual, tínhamos em mente a utilização de uma sutil – porém crítica – metáfora que ancorava-se na estimulação de uma comparação mental entre a atmosfera política e social de um engenho de escravos e o cenário sócio-histórico atual de nossa cidade de Piracicaba.
Muito aquém da noção de “Província” (termo tão bem utilizado pelo genial jornalista Cecílio Elias Neto, como nome de seu espaço jornalístico), acreditávamos sinceramente que nossa “terrinha” – ainda que em pleno século XXI – nem mesmo uma província poderia gabar-se de ser.
Nesse momento, não tínhamos em mente a formatação de uma crítica às modernidades ou não de nossa urbe, mas clareava-nos a necessidade de mostrarmos, sim, que as relações (político-sociais e, especialmente, culturais) na “Noiva da Colina” ainda funcionavam como num velho engenho – com famílias “importantes” e de “sobrenome” ditando regras, com grupos de privilegiados estabelecendo padrões econômicos e morais, com a força do preconceito forjando o ferro com que se marca na pele das “minorias”, a fogo, o símbolo da hipocrisia religiosa, sexual e de costumes que ainda se vê por aqui.
Focados na atividade cultural “alternativa” e na opinião de pensadores que se dispunham a refletir criticamente sobre nossa condição de engenho – reflexão essa quase sempre excluída da mídia tradicional local – nosso Diário (nem tão diário assim, é verdade), veio crescendo e se inscrevendo. Ao longo desses cinco anos de trabalho, a nossa noção de Piracicaba como um grande engenho não diminuiu. Pelo contrário, aumentou.
Por outro lado, o que não esperávamos era que a noção de Brasil como um grande engenho pudesse novamente voltar à tona. Após mais de uma década de avanços políticos, sociais e culturais que encheram o mundo de espanto e admiração, vemos mais uma vez o país – e não mais apenas Piracicaba – assumir-se explicitamente como cruel e imenso engenho de escravos. Ampliada assim a noção de engenho, o nosso Diário do Engenho, hoje, acabou deixando de ser apenas o diário virtual de um engenho chamado Piracicaba para ser o diário virtual de um engenho chamado Brasil.
E não é para menos. O retrocesso político que estamos assistindo nesses últimos dois meses refez de nossa pátria esse velho engenho. Reacendidas as fornalhas e os tachos de cobre da velha política, reaquecidas as caldeiras da opressão e postas em funcionamento as grandes rodas d´água da alienação social, o engenho Brasil recoloca também no poder os donos da antiga casa-grande – que andavam ocultos, porém atentos, pelas roças do país.
Em apenas dois meses, velhos coronéis grisalhos e suas sinhás-moças deram marcha a ré nos direitos trabalhistas de nosso povo de uma forma que há muito não se via. No lugar do álcool e da cana de outrora, o Brasil-engenho de hoje entrega agora à metrópole o seu petróleo e mais um sem-fim de seus recursos naturais. Os velhos coronéis e suas sinhás-moças propõe também, para o povo, o fim do investimento em educação, em saúde, em segurança. De pior forma que antes, a derrama de nosso ouro não mais é suficiente para a sanha de nossos senhores – que exigem que a conta fiscal seja refeita e os impostos ampliados. E, por incrível que possa parecer, até mesmo o estudo e a faculdade – se disse nessas rodas da alta classe – passam a ser escancaradamente privilégio de quem tiver dinheiro. Afinal, pobre não precisa estudar – escravo inteligente é sempre mais perigoso.
No lugar das botas largas de outrora, do charuto forte e do chapéu clássico, os coronéis adotaram hoje as becas pretas, os ternos importados. Hoje, não mais cavalos nem discursos no alpendre. Agora, os coronéis têm carros importados, têm redes de comunicação, têm jornais, rádios e outros. Aclamados por escravos e súditos, assumem novamente esses coronéis a compleição dos mitos e dos heróis. Sob a égide da limpeza política, querem também exterminar as raças, o gêneros e o colorido da nação. E tudo com a aprovação de boa parte da elite burra que vive esperando a sua condecoração para se sentir parte integrante de uma seleto grupo de eleitos.
Triste Brasil-Engenho que nos obrigado a escrever, neste Diário, a sua tortuosa e infeliz história.
PS: nem mais temos um Franz Post a nos pintar. O engenho atual é dos Romeros Britos.
Que pena.
Crítica lúcida, abrangente e corajosa.
Perfeito, Alê.
Parabéns.
Abraço.
A palavra que me veio à mente ao ler seu editorial foi CORAGEM!!!
Parabéns, Alê!!!