Ultraje

Ultraje

“Mas Apolo afastava-lhe do corpo a escória, /condoendo-se do morto, e o recobria com a égide/áurea, para no arrasto não ferir-se. O iroso/ ultrajava o divino Héctor” (Versos 20-22 do Canto XXIV da Ilíada, pág.441, tradução de Haroldo de Campos, Editora Benvirá). O trecho fala de Heitor, herói de Tróia, morto por Aquiles que lhe ultraja o cadáver, arrastando-o preso ao carro de combate. O deus Apolo, condói-se e protege o corpo com seu manto para que não se ultraje ainda mais o troiano morto. E você Cláudia Silva Ferreira, que deus a protegeu para não se ferir no arrasto? O deus dos seus ancestrais, Xangô? Me permita saudá-lo também: Kaô Kabiesile!

Comparo a sua, com a história que se assemelha no aviltamento de outro corpo, é meu jeito de nunca esquecer. A despedida de Heitor de sua esposa Andrômaca, que carrega o pequeno filho Astíanax, me emociona. E a sua? Como foi a despedida do marido, dos filhos naquela manhã? Não se despediram?

Entendo. Na vida das pessoas negras nas periferias há sempre a despedida. Nas conversas, no abraçar-se, no trocar o pequeno de colo para a cumplicidade de repartir seu calor, no sorrir quando ele se assusta com o penacho no elmo. Entendo. O fantasma da despedida está ali a cada vez que se sai de casa, que a porta se fecha. Ou quando não se sai de casa, que negros “estão na estatística das balas perdidas”, que a “violência tem cor”, as balas perdidas vão te encontrar, vão entrar na sua casa, a porta não segura. O que você conta, as portas do barraco, das casas simples, não protegem seus moradores. Nem as muralhas de Tróia a protegeram – e foi tanto horror que até os deuses se horrorizaram.

Essa história que conto – misturada à sua, Cláudia – é repetida há milhares de anos. E a sua? Quem a contará quando seu marido se juntar a você? Quando seus filhos, que ficaram esperando o pão que você foi comprar, juntarem-se a vocês? Os sobrinhos que você também cuidava? Quem a contará?

Ao menos hoje, a contamos:

Na manhã de 16 de março de 2014, Cláudia Silva Ferreira, 38 anos, mulher negra, casada, auxiliar de serviços gerais, mãe de quatro filhos, foi baleada a poucos metros de sua casa durante uma operação da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, no Morro da Congonha, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. No dia seguinte, O Jornal Extra publica: “Viatura da PM arrasta mulher por rua da Zona Norte do Rio. Veja o vídeo”. Cláudia, baleada, estaria sendo levada na viatura para um hospital, a porta se abriu, ela caiu e ficou presa pela roupa e foi arrastada por cerca de 250 metros, apesar dos gritos da dor que avisa. O ultraje foi filmado por um cinegrafista amador.

Em 22 de fevereiro de 2024, um juiz do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decidiu absolver os seis policiais que eram réus por assassinato e fraude processual no “Caso Cláudia”. Ou seja, sequer foram levados a Júri Popular. Dez anos depois – mesmo tempo do cerco e queda de Tróia – a esperança de justiça para Cláudia Silva Ferreira caiu também.

Não sei o que lhe dizer, Cláudia. Até desejar que você descanse em paz me soa como um ultraje.

 


Sergio Oliveira Moraes é físico e professor aposentado ESALQ/USP

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