Controverso, para dizer o mínimo, tem sido a maneira com que algumas instituições dinamizam os processos de seleção e recrutamento de novos colaboradores. Instrumentalizados com métodos próprios de uma psicologia rasa, a grande meta de tais processos talvez seja identificar pessoas medianas – consideradas normais – e excluir os candidatos não enquadrados nos parâmetros de normalidade e equilíbrio, mais propensos talvez ao brilhantismo.
Neste ponto, os departamentos de recursos humanos, tomados por uma razão instrumental, estabelecem suas estratégias de gestão de pessoas, almejando a plena eficiência, a qualidade total. Verdadeiros birôs altamente burocratizados, com sofisticadas, intrigantes técnicas, oriundas, grosso modo, da psicologia comportamental, munidos de testes motores e psicológicos, questionários, dinâmicas individuais e em grupo etc, todo aparato possível e necessário para se identificar alguma rusga, sinal de desequilíbrio. Procura-se, em última instância, o homem médio, não o brilhante, ousado, criativo. Aquele profissional que cumprirá eficazmente as exigências da labuta diária, sem provocar conflitos, tensões, mas também sem criar, propor novas dinâmicas de trabalho.
Seria interessante conjecturar como é que se sairiam alguns dos gênios da humanidade em processos seletivos desse porte. Aristóteles, sem dúvida um dos maiores nomes da filosofia, no Argumento 54, aborda o tema do homem de gênio, dominado pela bile negra. Para o estagirita – que também tinha suas peculiaridades, com sua filosofia peripatética – todo brilhantismo, genialidade contempla uma dimensão de excentricidade, nebulosidade, desequilíbrio.
Talvez um bom exemplo, para prosseguirmos com um personagem de genialidade inconteste – mesmo que ainda haja quem defenda sua não existência –, seja Sócrates, o grande mestre de Atenas. Com seu característico método investigativo, pautado na ironia e maiêutica, Sócrates incomodava, com sua dialética, seus interlocutores, promovendo situações de tensão e profundo constrangimento. Considerado um grande chato, inconveniente, impertinente, Sócrates passou a ser motivo de escárnio. Pai das perguntas agudas e essenciais, Sócrates certamente não passaria incólume a um processo seletivo de abordagem superficial e redutora.
Saltando muitos séculos, não por falta de exemplos, mas simplesmente para não ser prolixo em demasia, peguemos agora, como candidato a uma vaga de emprego, o paladino da democracia, o filósofo Jean-Jacques Rousseau. De reconhecido brilhantismo e genialidade impar, o pensamento de Rousseau é tão intenso quanto seu temperamento. Sem maiores delongas, Rousseau mandaria às favas – para dizer o mínimo – seu examinador a lhe aplicar o teste palográfico (fazer riscos paralelos em uma folha sem pauta). Apesar de buscar a vontade geral, oriunda do consenso, Rousseau não era complacente com certas posturas e opiniões alheias, chegando a insultar e dizer impropérios aos seus interlocutores, fossem eles quem fosse. O próprio Voltaire foi alvo da fúria verbal de Rousseau.
Outro pensador que certamente não seria admitido após os modernos, burocráticos processos de seleção, é o filósofo Friedrich Nietzsche. A própria essência da filosofia de Nietzsche já se apresenta como um contraponto crítico às noções de normalidade, equilíbrio e razoabilidade, a definirem, comporem os critérios básicos do que é hoje considerado como adequado. Para Nietzsche, as forças de criatividade, de ousadia, do inusitado pertencem à esfera do Dionisíaco, representação e fonte da vontade de potência do humano. Nietzsche talvez tivesse um colapso nervoso, acometido de fortes dores de cabeça, diante do teste D2 – teste de avaliação da atenção concentrada visual.
Em outro lugar de análise e referência, poderíamos situar, a título ainda de ilustração, Immanuel Kant, representante maior do Iluminismo – movimento de apologia à razão e à liberdade. Com sua aguda racionalidade, Kant é tomado por uma existência marcada pela constância ética, pautada em uma metódica, sistemática disciplina. A disciplina de Kant e postura estritamente racional talvez não o credenciassem para um posto em uma moderna organização, que logo identificaria um traço de desequilíbrio em tamanho autocontrole e sistematicidade. Diriam que Kant deveria adquirir jogo de cintura, sendo menos inflexível, inclusive no que toca a dimensão moral.
Talvez nem mesmo Sigmund Freud conseguisse a chancela de funcionário do mês, segundo os critérios avaliativos em gestão de pessoas. Toda genialidade do pai da psicanálise poderia cair em descrédito, diante de uma seleção presa a tabus e preocupada com bons costumes – seja lá o que isso quer dizer. Freud estaria logo sob suspeita, em um contexto de abordagem vulgar da sexualidade e de frágil compreensão das representações do inconsciente humano.
Apenas para citar um pensador contemporâneo, escapando do argumento de que os tempos são outros, talvez seja interessante destacar a figura de Edgar Morin. Com a perspectiva da complexidade, Morin aponta a necessidade de um conhecimento capaz de considerar as múltiplas faces da realidade. Para Morin, o conhecimento relevante esta respaldado em perspectivas críticas, amplas, abrangentes. Talvez Morin fosse rejeitado justamente por ser considerado fora de foco, de postura muito aberta. A psicóloga recomendaria, aconselharia um olhar mais especializado, restrito a um determinado aspecto, argumentando que não é possível saber tudo.
Afinal, é preciso reconhecer as limitações. A proposta da complexidade é arrogância intelectual. Definitivamente Morin não seria um colaborador enquadrado nos moldes estabelecidos.
A lista é mesmo longa, diria infindável. Muitos pensadores desfilariam sob os olhos atônitos dos avaliadores de plantão, com seus precisos modelos comportamentais, ávidos por descobrirem, identificarem anomalias e desequilíbrios, perplexos diante de tantas personalidades em descompasso com os padrões de normalidade e equilíbrio. O ode, a exaltação à mediocridade está posto. As vagas estão disponíveis, mas apenas para os medianos. Qualquer resquício de genialidade, brilhantismo deve ser prontamente identificado e repelido pelos modernos instrumentos e métodos de seleção de pessoal.
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Adelino Francisco de Oliveira é filósofo, teólogo e pós-doutorando pela ESALQ/USP.
Caro Adelino, bela análise dos tempos em que vivemos, já havia lido comentários a respeito dos grandes autores da literatura não serem bons alunos, particularmente da disciplina de língua portuguesa, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade. Já enfrentei muitas seleções no mercado de trabalho e percebo o quanto essa análise filosófica dos tempos em que vivemos é avassalador. Lembro de certa ocasião em que, depois de muitos testes, uma instituição, perplexa de, num teste típico do que comenta, ter chegado ao meu QI de valor extremamente alto para a expectativa local, apontaram 9,4. A psicóloga, não contente com o resultado, me fez uma pergunta muito pontual a respeito da qualidade do meu relacionamento conjugal, o que me deixou desconcertada! Provavelmente ela saberia que muita inteligência racional pode não dar em boa inteligência emocional. Menti como pude, afinal precisamos trabalhar. Depois até contemporizei, afinal, alguém que passe a noita discutinde a relação não pode mesmo dar boas aulas no dia seguinte, pobre dos alunos! Há de se cuidar deles que ficam sob tutela de um professor por várias horas seguidas. O mais curioso do que comenta é lembrar que o Japão, que é considerado um país de educação exemplar, mira no aluno mediano, pois considera que a escola não deve nivelar por baixo e que o aluno brilhante não precisa da escola para crescer, está por natureza desinteressado da vida comum. Só me preocupo com o que estamos fazendo na escola brasileira, estamos mantendo baixo nível escolar, por exemplo, na escola pública; e, por sua vez, mirando alunos exemplares na escola particular? Se sim, vejo que estamos errando por duas vezes, pois, como disse, tanto o trabalhador sem preparo como o genial não tem lugar no sistema de produção em que vivemos. Somos, portanto, brasileiros desajustados, tanto o menos quanto o mais preparado, pelo menos desajustado nesse mundo em que vivemos! Com Carinho, Angela.
Prezada Angela,
Estimo que esteja bem!
Agradeço por sua contribuição,comentário, a ilustrar e aprofundar bem a relevância da questão abordado em meu texto.
Essa realidade já vem ocorrendo já há alguns anos, mas foi o primeiro que li sobre isso!
Muito bom e obrigada por passar tantos conhecimentos,
Um grande abraço, sempre aprendi muito com seus comentários, ainda que eu tenha tido poucas oportunidades.
Um grande abraço!
Keila (prof de espanhol), irmã da sua ex-aluna Kenia.
Prezada Profa. Keila,
Estimo que esteja bem!
É bom encontrá-la neste espaço de reflexão e debate. Agradeço por seu comentário. Dê um abraço na querida Kenia.
Gostei demais, Prof. Adelino.
Há muito estou assustada com a qualidade profissional inadequada e insuficiente de pessoas no mercado de trabalho, o que me faz pensar se fica mais barato contratar pessoas com menos qualificação. Deve ser isto, com certeza.
Conheço alguns jovens que, conscientes da necessidade de serem bons profissionais na carreira escolhida, fizeram cursos de especialização, foram para o exterior para melhoria de sua formação e, na busca de um emprego, percebem que os empregadores arrumam um motivo para não contratá-los. Ou são mais explícitos: ” Você tem uma formação boa demais. Não podemos pagar um salário adequado ao seu curriculum”. Esses mesmos jovens me contaram que refizeram seu curriculum retirando cursos. Isso facilita para passarem pela seleção. Triste realidade.
Boa mesmo foi sua escolha dos candidatos a emprego, seu perfil e os motivos pelos quais não passariam nos testes. Com cada um me surpreendi e, porque não, me diverti bastante.
Suas reflexões sempre me acrescentam. Gostaria de ter a oportunidade de mais leituras de sua autoria.
Um abraço.
Querida Zilma Bandel,
Estimo que esteja bem!
Agradeço pela interlocução qualificada, crítica, problematizadora e também muito generosa. De fato, vivemos em tempos difíceis, em alguns momentos insuportáveis. Talvez o exercício da escrita, da reflexão seja um caminho para se enfrentar todo esse estado de coisas. Ao menos nos resta a dignidade do pensar…
Com cordial amizade,
Adelino
Parabéns prof: Adelino…Gostei muito de suas palavras muito sabias…abração
Fantástica colocação, professor Adelino! Visto que eu mesma já passei por alguns processos seletivos em empresas multinacionais, em SP, e enfrentei essas mesmas desculpas e alegações. Na época, foi como se estivessem mentindo apenas para que eu não me sentisse menosprezada, porém a situação se repetiu por mais 2 vezes e, então pude constatar que realmente meu perfil profissional estava muito acima do desejado. Por fim, optei partir para outras áreas e novos desafios, formando uma experiência vasta e dinâmica em diversas áreas até esbarrar-me na carência de um outro idioma. Os desafios continuam, mas isso pode nos servir como combustível para novas atribuições, novos conhecimentos, novos objetivos. Parabéns pelo texto. Com amizade. Lindamar Rufino.