Palavra que é verdade! Juro! A palavra ali. Fria. Sobre a pedra. Feito muro. Esquecida da poesia. Carrego um pacote delas comigo. Às vezes, as chacoalho feito um dadaísta e as jogo sobre o pano. Outras, as escolho pelo lustro – como fosse eu um refugo parnasiano. Adoro mesmo a coleção das que não uso. Quer saber algumas? Beneplácito é uma delas. Incúria é outra. Quer mais? Emula. Petriz. Carraspana. Graveza. Amaríssimo. Macérrimo. Coita. Suso.
Palavra que não vi! Juro! A realidade ali – e eu a procurar um poético plano. A vida sobre a pedra e eu a desenhar poesia. O muro a emparedar o dia e eu vaguear o verbo em som piano. Quando dei por mim, vi pelos jornais uma adolescente morta, assassinada, jogada qual fosse lixo à beira da estrada. Achei palavra para tanto? Nada. Deitei sobre o pano dos sentidos o verbo antes ao pé do ouvido e me deparei comigo, sem vocábulo-amigo a nomear uma tristeza feita de incredulidade e espanto. Achei palavra? Para que eu faria um canto? A palavra em si é um fim? De que servem as palavras diante de absurdos (e são tantos) assim?
Às vezes, quase sempre, oculto que me revolta a poesia. Porque de tanto querer as palavras, de tanto querer me irmanar a elas e acumulá-las e guardá-las e cantá-las, são elas o que não acho quando mais preciso. Então, emulo – amaríssimo. Então, descreio e escrevo sonhos de versos sem beneplácitos. Graveza. Por que dizer mais? À beira do abismo do mundo, cúmulo do mal, a poesia é o túmulo do lirismo irreal. Agora entendo o poeta João Cabral quando escreveu: “Poesia, te escrevia: flor! Conhecendo que é fezes. Fezes como qualquer, gerando cogumelos (raros, frágeis cogumelos) no úmido calor de nossa boca” – oca, acrescentaria eu.
Inútil a poesia – afinal – diante do carro que fura, veloz, o sinal. Sutil inútil poesia dentro dos bolsos cheios do capital (que mata e consome e explora e mata). O que pode a poesia sobre o rastro da floresta, derrubada, a virar pasto? O que é a poesia em meio à guerra senão palavra-bala-perdida que erra? Poesia inútil ao meio dia sob o sol que serpenteia em fogo sobre a vida – também quase sempre inútil – de mim alheia. Alheia porque sigo aqui, arquivando vocábulos como fossem eles – e não tão somente eu – bichos nos estábulos. “Palavras impossíveis de poema. Te escrevo, por isso, fezes, palavra leve, contando com sua breve. Te escrevo cuspe, cuspe, não mais” – me irmano a ti, João Cabral, poeta dos meus ais.
Palavra que é verdade! Juro! Palavra que eu releria esta semana o mundo – rima rasa e fria – mas não reli. Porque a realidade me foi (e é) mais. Porque a antiode cabralina se fez – também esta semana – cotidiana crônica quase insana. Olhei tudo de olhos sem poesia, poesia “extinta de flor, flor, não de todo flor, mas flor, bolha aberta no maduro”. Sutil poesia inútil. Não mais que palavra pichada num muro.
Alexandre Bragion é doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp. Autor do livro de poemas “Casa Burguesa sem Chave” e editor do Diário do Engenho.