A humanidade mergulhou num sono profundo, hipnótico,
numa fundíssima caverna platônica, onde as sombras se movem,
fugazes, enquanto as pessoas apostam e lhes atribuem significados,
amarradas aos seus lugares, sendo alimentadas
com sensações e palavras, como na enfermaria do diabo,
e vivem e morrem nesse ciclo infinito, enquanto se enganam
pensando estar indo a qualquer parte, mas não,
transformaram a realidade numa ficção
que embalam e reforçam com frases feitas,
alguns justificando a própria pasmaceira, outros uma agitação descabelada,
outros ainda dizendo contribuir para alargar fronteiras,
enquanto a maioria se sente confortável por ser estrangulada
em seus assentos, enquanto repetem, sem um minuto de silêncio,
a ladainha insuportável de suas crenças sem sentido,
essas mesmas em que viveram há séculos seus avós,
e que fazem com que existem sempre dois mundos, um real
e outro feito de miçangas piedosas que enfeitam o ego,
tornando uns poucos os melhores do mundo,
pois é para isso – pensam eles – que são religiosos,
e que sua religião lhes concede o dom de brilhar
ética e moralmente, enquanto pairam acima da humanidade, seja de crentes outros, seja dos descrentes,
e eles têm como apanágio exclusivo sua verdade, e a certeza
de que lhes espera algo a que chamam de céu, enquanto todos,
sim, todos os demais curtirão o fogo impiedoso,
mortífero e eterno,
das caldeiras ardentes, sulfurosas e pestilentas
de um suposto e muito mal definido inferno.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.