Por Rafael Gonzaga de Macedo
I
Escrevo utilizando o LibreOffice, poderia utilizar uma versão pirateada do Word, mas o primeiro foi construído para ser livremente distribuído e penso que esse deve ser o caminho de todas as coisas criadas a partir de agora. Também escrevo de forma fragmentária, pois é uma forma de me aproximar da maneira como funcionam os sonhos. O sonho é uma experiência libertadora, pois diferentemente do pensamento linear ele acontece em saltos. O sonho salta, como a pintura de um famoso pintor surrealista, dali e daqui sem nenhuma cerimônia, costura diferentes contextos, gerando novas sínteses. Talvez o segredo para chegarmos a uma sociedade do porvir seja o atalho aberto pelo mundo onírico.
II
Já fazem três ou quatro semanas de quarentena, não sei mais. Mas desde janeiro, acompanhando as notícias da China e depois da Itália, fui tomado de grande angustia que me paralisou até o momento de escrever esses pensamentos que me tomaram de assalto. Quando as redes sociais começaram a compartilhar as notícias da quarentena ou do lockdown no norte da Itália e depois em todo o país, minha cabeça entrou em parafuso, em um turbilhão de pânico, excitação e ansiedade. Hoje eu percebo que estou em uma espécie de luto.
III
Acabei de adicionar a palavra lockdown ao dicionário do meu LibreOffice. É curioso como palavras novas invadem nosso cotidiano e reclamam um lugar na empoeirada estante de vocabulários e ali se acomoda como se sempre existira. É como os livros nunca lidos na estante de um youtuber, mas que ilustra sua sabedoria no cenário de uma live. Será que as palavras genocídio, grupo de extermínio e juros bancário também entraram na vida das pessoas dessa maneira?
IV
Assim como os soldados da Primeira Guerra Mundial voltavam da experiência da batalha nas trincheiras incapazes de expressar o que tinham vivido. A quarentena tem exercido um tipo de ação análoga em mim. Sinceramente achei que poderia utilizar o tempo “livre” para produzir, mas a única coisa livre em mim são meus sonhos e pesadelos desconexos. Condição estranha: morrer sem, no entanto, estar dormindo, mas só dormindo é que a vida pode ganhar sentido. Ser condenado a acompanhar os viventes sem aproveitar o sabor da comida, o barulho das festas e a recordação feliz no fim do dia.
V
Logo após a Revolução de Outubro, os russos davam nomes desumanizados a seus filhos, chamavam-nos de Outubro, “Pjatileka”, referência ao plano quinquenal ou ОСОАВИАХИМ, nome de uma companhia de aviação. Esse gesto era uma resposta inconsciente de que algo realmente novo havia rompido, um mundo porvir que acendia a esperança de uma nova vida na Terra. Nomear coisas é a primeira forma de fronteira entre humanidade e não humanidade. Quanto tempo isso demorou para tocar o espírito dos russos? Talvez seja cruel, mas continuamos avidamente aprisionados ao que existia antes da quarentena, como se tudo fosse voltar ao “normal”. Quanto tempo foi preciso para que as pessoas achassem normal os bombardeios de saturação na II Guerra Mundial?
VI
A história é a marcha dos vencedores. Estes são herdeiros dos vencedores de outrora, que carregam consigo os espólios de velhas batalhas. Os troféus de guerra são canalizados em sentidos semânticos orientados pela vontade desses vencedores do presente, sempre do presente. Não importa se os vencedores são mulheres, negros ou homens brancos ocidentais. No capitalismo, vencedores sempre serão vencedores e tentarão manter essa condição através da imposição de uma normalidade que sempre existiu, do princípio ao fim do tempo. É assim que um antigo espólio pode cair em desgraça ou receber uma nova roupagem, trata-se sempre de, no presente, garantir a vitória sobre um inimigo tático. O vencedor de agora pode, inclusive, colocar em perigo o cadáver de um velho rei, ostentando seu corpo apodrecido em um posto de gasolina. São jogadas de uma guerra híbrida, como em uma partida do jogo de estratégia chinês chamado Weiqi.
VII
Ao acreditarmos que a história e o progresso são contínuos, através da tentativa de mantermos nossas vidas como era antes da quarentena, não estamos, na verdade, apenas contribuindo para novas canalizações dos vencedores do agora? Música, cinema e literatura, a arte que não lidar com o luto, nesse momento, não merece continuar existindo. Se amanha queimarem o Itaú, que não seja feito pelas mãos de um novo banco cujo logo tenha a cor laranja.
VIII
No decorrer da Primeira Guerra Mundial, seguida da Gripe Espanhola, quando todo o progresso técnico científico foi canalizado para matar, um mundo morreu. Mas as pessoas continuaram acreditando no progresso e vivendo suas vidas como se o fluxo da história fosse contínuo e seguro, não seria isso a origem do fascismo? Alguns homens, especialmente artistas notaram a morte daquela sensibilidade e sonharam, como um vidente, com algo novo. Como representar o mundo na linguagem domesticada da perspectiva óptica renascentista depois da invenção da metralhadora e da carnificina da trincheira? Ou do avião que mergulha despejando bombas aleatoriamente? Assim como os russos que deram nome de objetos, coisas e datas a seus filhos, Einstein inventou a teoria da relatividade, dando passos para uma quarta dimensão e os cubistas inventaram a própria visualidade dessa nova dimensão ao inserir o tempo e o espaço na tela bidimensional. Mas tudo isso foi um movimento de vanguarda, que só se tornaria mainstream quando domesticado. O que há em comum? A necessidade de reinventar a vida, fazendo novos usos da “cultura”.
XIX
A angustia é que esse mundo morreu sem saber, como alguém que morre em uma chacina na periferia de São Paulo sem dever nada pra ninguém. Os vencedores de agora querem continuar vencendo em um fluxo contínuo, que mantém a sensibilidade canalizada para manter velhas estruturas em pé, mas esses vencedores sabem que tudo acabou, como sabiam do estrago do coronavírus muito meses antes.
X
O novo mundo ainda não nasceu e ninguém sabe realmente como ele será. Estamos em uma encruzilhada e sendo conduzidos para o caminho pacífico da antiga normalidade, que será uma farsa, talvez breve. O presente está em disputa e infelizmente os vencedores de sempre estão ganhando na medida em que mantemos nosso cotidiano intacto. Os vencedores de sempre são forças maquínicas autopropulsadas por nós mesmos, que despejam concreto em nossos ossos, dando-lhe firmeza, mas também nos determinando. Preenche nossos ossos de energia para viver cada dia de quarentena sem entrar em desespero, mas todas as noites eu sonho, tenho pesadelos. Não serão esses sonhos e pesadelos rachaduras nesse concreto?
XI
Como um viciado em cocaína, as pessoas continuam vivendo em detrimento de si mesmo através daquilo que elas consomem. Como sonâmbulas vão vivendo enquanto podem. As forças maquínicas, formada em grande medida por nós mesmos, despejam em conta-gotas essa droga enquanto a tempestade passa. A esperança dessas forças vencedoras é que as coisas mudem de maneira controlada para que tudo fique como está.
XII
Quando um mundo novo vai aparecer, normalmente, emergem também pensamentos futuristas que desejam a morte e a destruição de forma consciente ou inconsciente. A esquerda jamais poderá ser acusada de ser vanguarda no momento atual. O que são as carreatas antiquarentena se não uma versão contemporânea e inconsciente do manifesto futurista italiano, que dizia não haver nada mais belo que a visão de um tanque despejando bala em pessoas?
Parabéns, Rafael Gonzaga de Macedo por compartilhar sua experiência libertadora conosco. Seus sonhos é um convite à reflexão, principalmente em tempos de difíceis encruzilhadas.
Olá amigo Rafael,
Só hoje tive condições de parar para ler seu texto. Na verdade um provocativo ensaio, tomado por tantas possibilidades interpretativas.
Estava preocupado em não ter conseguido lê-lo de pronto, assim que você o publicou. Mas agora compreendo que seu ensaio pede algum tempo de maturação e um certo lugar tranquilo, pois remete a uma experiência de introspecção contemplativa.
Sua escrita, muito próxima à de Nietzsche, não apenas no recurso de fragmentos, mas por conter sangue e sonhos é uma provocação para a aurora do além homem ou do homem transbordante, como gostava de dizer Rubem Alves, que nunca aceitou a tradução mais comum de super homem.
Compartilho de suas percepções, talvez a dimensão onírica seja hoje nosso único refúgio e a arte que não denunciar o fim de um mundo não seja mais nem arte. Gosto de pensar uma arte militante.
Obrigado por compartilhar de seus sonhos e demônios.
Fraternal abraço, Adelino F. Oliveira